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domingo, 29 de dezembro de 2013

Elisa (parte final)

Stephane acariciou o rosto de estátua da mulher. Tinha os cabelos negros espalhados pelas costas que desnudavam apenas parte dos seios. Passou a mão pela cintura, pelas coxas que o tempo tinha tratado de tornear. Já não era mais a menina assustada que ele havia tomado a virgindade. Ela soltou uma palavra indecifrável e virou-se para o outro lado. Ele voltou a cobri-la com cuidado, lhe pedindo perdão enquanto o fazia. Passou pelo berço onde dormia seu filho e admirou quem sabe pela última vez, o sono tranquilo do bebê. Retirou o anel, presente do rei  quando salvara-lhe a vida, e depositara em cima da mesa ao lado do jarro d'água. Não havia conseguido dormir nada depois que fizeram sexo, passou a maior parte do tempo vigiando os suspiros que Elisa soltava durante o sono. Mas já era tempo de se ir, vestiu-se e amarrou com cuidado o saco de moedas de ouro em uma bolsa na sela do animal. Deixou algum dinheiro sob o colchão na esperança que a esposa o achasse antes de trocar a palha. Porém temia que tal não fosse necessário, provavelmente Philippe lhe tomaria a propriedade, dando-a para quem lhe trouxesse sua cabeça. Rezava para que poupasse a vida da mulher e da criança, que nada tinham a ver com sua traição e parecendo que não, o fato de ir sozinho ao invés de um ato de egoísmo, era a melhor forma de garantir a segurança de sua família. Era  ele quem o rei queria e levá-los só o atrasaria, tornando o trabalho deste mais fácil. Ao menos Vianca teve a amabilidade de mandar sua aia de confiança avisá-lo há três dias. A mulher trazia nos olhos azuis o medo da rainha. Trêmula lhe implorava para que fugisse e salvasse sua vida. O rei havia demonstrado nos últimos tempos o quanto estava desgostoso com a origem do herdeiro. 
Stephane nunca soube o quão providencial fora a decisão de partir no meio daquela noite de lua cheia, em que conseguiu pela claridade, tomar atalho fora da estrada real, sempre com cuidado para não ser surpreendido por algum grupo de ladrões. Fora vestido com roupas simples para passar-se por um  mero camponês, embora tivesse de ter cuidado constante para ocultar o porte imponente de cavaleiro real. Encurvou-se sob a capa de lã e galopou até o dia virar noite novamente, só parando para deixar o animal tomar água.
Quando Elisa viu o homem baixo e calvo a entrar em sua casa, ficou por instantes atordoada. Marie pegava a criança que chorava lá dentro e ela ao ver o brasão da casa Gautier rapidamente percebeu de quem se tratava e fez uma vênia meio atrapalhada pelo susto. 
- Em que posso servir meu Senhor?
- Procuro por Monsieur Stephane. Diga-me onde ele está. - Falou rispidamente a cuspir-se o rei. Elisa levantou o rosto e evitou limpar a saliva que ele lhe tinha jogado.
- Juro pela Virgem, não sei onde ele está. Pensei que era a notícia de sua morte que me traziam. Faz dois dias que não o vejo. Por favor meu Senhor, se souberem do paradeir... - Philippe retirou a mão para que a mulher não a beijasse. Virou-se para os homens que naquele momento voltavam para os cavalos não tendo achado indício nenhum do traidor:
- Peguem esta mulher e a criança também!
Dois homens grandes e fortes a carregaram para a garupa de um, não fazendo qualquer esforço frente sua resistência concentrada em um metro e cinquenta de raiva e medo. Outro arrancou das mãos da criada o menino em prantos. Foi com o olhar desfocado que viu por entre lágrimas, a casa de pedra e janelas exíguas ficar cada vez menor no horizonte e apesar de não enxergar mais nada, sabia que Marie ficara em pé, toldada de surpresa e choro. As lágrimas inofensivas, além de às vezes a própria vagina, eram infelizmente as únicas armas de uma mulher.
Elisa fora jogada e trancada juntamente com Dominic em um dos quartos de hóspedes do castelo. Não lhe falaram nada, nenhuma explicação para os tratarem como cães, mas desconfiava que aquilo só podia ser coisa de Stephane. O que havia aprontado para o rei? Roubou-lhe algo? Ao cair da noite, uma criada entrou com uma bandeja de sopa e um punhado de pão para dividir com o pequeno. Trouxe mais tarde, panos e água morna para lavar o bebê que já tinha se borrado pelas pernas, e permaneceu na tarefa calmamente enquanto Elisa comia o resto da sopa. Depois agarrou no menino e ia abrindo a porta quando a mulher lhe puxou o braço. A criada apenas balançou a cabeça com olhar maternal, como a dizer, não adianta de nada minha querida e garantiu-lhe com um olhar de ternura que não maltrataria Dominic. 
Elisa sentou-se na cama com o olhar fixo na lareira, as paredes eram tão frias e úmidas que tinham de acendê-la o ano todo. O fogo levantava labaredas como um réptil a alçar as pedras enegrecidas pelo tempo, encolhia-se e espreguiçava ao sabor da brisa que entrava pelas frestas da janela. Do outro lado do aposento, uma vela morria aos poucos iluminando palidamente o leito e a mesa onde se encontrava. A porta abriu-se de assalto, tirando a moça de sua hipnose voluntária pelas chamas. Philippe puxou-lhe os cabelos e enfiou a língua para dentro de sua boca. Empurrou-a para cama sem dizer nada e ela em um mutismo resignado, deixou que ele amargasse a raiva em seu corpo por uma e outra vez. Foi assim durante todas as noites em que a manteve em cativeiro, deixando que visse seu filho apenas em raros momentos. Até Elisa notar a falta de seu período, e por ironia, a prisão que lhe tinha sido a gravidez anterior, fora o que a libertou desta vez. Pôde enfim andar pelos corredores e frequentar os jardins internos do castelo. Olhou para  o céu que se abria para o sol fugaz da manhã. Nos bancos, perto da estátua de um querubim, estavam duas mulheres a conversar animadamente e aos seus pés, Dominic brincava com outro menino mais novo. Elisa aproximou-se devagar, e à medida que o fazia, envergava um sorriso do tamanho da ansiedade que estava de pegá-lo ao colo. Já falava e corria com a audácia que os dois anos traziam às crianças. As duas cabeças escuras a balançarem os caracóis passaram em sua direção aos guinchos de alegria. Elisa estacou ignorada no meio, mas pode surpreender-se com o rosto muito semelhante dos dois. Foi então que entendeu o porquê de tudo aquilo. Os olhos da rainha, duas pedras jade a observá-la, convidou-a a sentar-se ao seu lado, certa de que apenas naquele momento a jovem tomara conhecimento da verdade. Elisa sem saber de si, assentiu e deixou que a outra pegasse em sua mão e entrelaçasse os dedos nos seus. 
- Fernand e Dominic serão grandes amigos. - Ainda achando a situação caricata demais para ser real, Elisa preferia o silêncio. - O Senhor Philippe não desistiu de procurar por Monsieur Stephane, mas irá...com o tempo. Já enforcou metade da vila que ousou duvidar de minha fidelidade e o resto acabará entendendo que isto é muito melhor do que deixar o reino dilacerado por não ter sucessor. Acalma-te, criança. - Ao ver que ela chorava sem conter os soluços, Vianca puxou-a para seu colo. - Vai ficar tudo bem. Que seria de nós mulheres se não nos aliarmos umas com as outras? Philippe já lhe fez um filho, estão quites os dois. Calma...calma....pshhhh....eu sei...vai ficar tudo bem... 
Elisa chorava pelo filho sem nome. Chorava por ela mesma, virada em concubina do rei,  sem casa e com um marido traidor da coroa, chorava por seu ventre agora transformado em instrumento de vingança. Chorava por não ter escolhido o convento e por saber ao mesmo tempo que a outra opção não seria tão melhor que aquela. Chorava porque tinha a certeza que choraria até o dia de sua morte e que possivelmente nem ela lhe livraria de tal maldição, a de não ter nascido com um membro entre as pernas. E era ridículo como um pedaço tão pequeno de carne, fazia tanta diferença na liberdade de alguém. E chorava...



* Como tinha dito, esta história foi baseada quase que totalmente em um sonho que tive e é uma pena que tenha acordado sem saber o que houve depois disto. O que aconteceu com Stephane, com Elisa e Dominic, se voltaram a se encontrar, se fugiram, se o mataram...não sei. Ficou apenas a insatisfação das histórias sem final e o marido sabe como fico quando assisto um filme assim.



sábado, 28 de dezembro de 2013

Elisa (parte 6)

Era uma tarde morna de verão quando o rei aproximou-se de seu fiel amigo. Tinha os poucos cabelos loiros que emolduravam a careca a reluzirem no sol. Stephane notou que depois da última campanha, esta tinha aumentado ainda mais. Philippe tomava largos goles do vinho em um cantil de couro com o bico trabalhado em prata. Ofereceu-lhe, mas ele recusou. Não sabe se era do calor ou da saudade da mulher ou do medo de ser descoberto, mas ultimamente fazia o possível para não beber, principalmente quando estavam apenas os dois.
Philippe quebrou o silêncio com sua voz pastosa:
- Parece que vou ter outro filho.
- É mesmo? Parabéns...e que seja homem! - Falou sem demorar-se nos olhos azuis do rei.
- O que houve meu amigo? Não está feliz com o teu rei? 
- Não é isto... - disse o cavaleiro vacilando no tom de voz. - É que faz muito tempo que não vejo os meus. Minha mulher não mandou notícias da última vez que o mercador por lá passou. E a novidade fez-me lembrar do meu pequeno, imagino que esteja quase a andar por suas próprias pernas! - Philippe estalou os beiços pensando que a missão do amigo já tinha terminado há mais de duas luas. Não tinha razões para prendê-lo por mais tempo.
- Então façamos assim: ficas até a festa de anunciação e depois vais para casa. Que tal? - Deu-lhe dois tapas nos ombros como permitia uma amizade que ia desde a adolescência. Amizade esta que a estupidez de sua rainha estava prestes a desmoronar.
Stephane aceitou desta vez um pouco do vinho e nunca o líquido desceu-lhe tão mal pela garganta.
Dominic enchia as mãos de terra e ria quando Marie tentava impedi-lo de colocá-las na boca. Elisa observava da janela enquanto fiava um fio muito fino e tingido de amarelo, que serviria depois para mais uma roupa para o filho. Ao longe na estrada de pedras, aproximava-se o cavalo negro do marido, era uma imagem tão esperada que quando finalmente se tornara real, ela não conseguia acreditar. Dez meses e alguns dias era o que os havia separado. Quando ele partiu, Elisa viu-se livre pela primeira vez na vida e ao invés de ficar imensamente feliz sendo senhora de si mesma e da sua própria casa, começou a sentir um vazio estranho. As folhas balançaram nos galhos, o frio chegou, a chuva, a neve, o orvalho. O sorriso do filho, as gracinhas, viu que já sentava sozinho e agora tentava por-se em pé segurando-se  nos móveis. Quando olhava para Dominic ainda lembrava mais do pai, ele tinha os seus olhos, a sua boca e os cabelos em caracóis. Fora tanto tempo a sonhar com sua vinda que agora era difícil acreditar que ele finalmente voltara. A pergunta agora era "por quanto tempo"?
O marido apeou do cavalo já com os dentes em fileira, agarrou no bebê que o olhou curioso e lhe apertou o nariz. Stephane sorriu e voltou a pô-lo no chão para agarrar a esposa que se encontrava estacada na porta. Pegou-a no colo e mordeu seus lábios com fúria:
- Achava que te livravas fácil de mim, minha pequena? - Elisa viu-se agarrando seu pescoço e permitindo outras demonstrações de carinho.
A mulher gemia quando a outra lhe amarrava o ventre. Todas as manhãs Vianca se submetia a esta pequena sessão de tortura, pois era a única maneira de tornar credível que aquele filho que esperava era legítimo. Às vezes virava para a criada e dizia para apertar mais.
- Mas vai fazer mal ao bebê minha Senhora...
- Aperta! - Dizia com a voz entrecortada de dor.
Tinha certeza de que esperava um menino. Tivera um sonho um mês antes do marido partir, em que via um homem de peito largo e cabelos escuros a vir em sua direção com o pênis ereto. Este homem dizia para que deitasse que ia lhe dar o que o frouxo do seu marido não conseguira. Vianca acordou sobressaltada e ao mesmo tempo com vergonha e molhada de desejo. Não viu o rosto do amante, nem encaixou-o em nenhum dos homens que cruzava diariamente, mas quando o rei anunciou que  ia deixá-la nas mãos de Stephane, seu melhor cavaleiro, fez-se luz.
Com a chegada da décima lua, Vianca viu concretizar-se o maior desejo de uma rainha, a parteira lhe estendia entre panos ainda úmidos de sangue, o menino que havia lhe sido prometido. Chorava de alegria. Era mais de dez anos de tentativas frustradas, de cochichos nos corredores de que tinha o ventre amaldiçoado, de preocupação do marido a pairar sobre alguma disputa futura e provável desmantelamento de seu reino, caso não conseguisse uma boa aliança através de Aurélie. Agora finalmente podia sentir-se segura ou pelo menos o que permitisse de segurança a alta mortalidade infantil daqueles tempos. Se tudo corresse bem nos primeiros anos e se a peste mantivesse-se afastada dali, era bem possível que ele chegasse a rei.
Quando levaram o bebê para Philippe, ele o carregou e foi em direção à lareira para vê-lo melhor. Não perecia nada com um prematuro, embora ele não soubesse grande coisa de prematuros, sabia de outros três bebês de termo que havia segurado anos antes. E este lhe parecia bem robusto, tanto quanto suas filhas o foram. Perscrutou os olhos cinzentos e indefinidos do recém nascido. Talvez ficassem verdes... Depois reparou nas bochechas rosadas e no cabelo negro. Aurélie tinha os cabelos assim quando nasceu e depois caíram para darem lugar a uma cabeleira loura e farta. Suspirou, antes de devolvê-lo para os braços da aia.
- Diga para a Senhora Vianca que é com muita satisfação que o nosso herdeiro carregará o nome do meu avô. Ele vai se chamar Fernand Gautier. - A moça assentiu e saiu silenciosamente, fechando a porta logo atrás de si.
Os meses passaram e a desconfiança aumentava para Philippe. Os cabelos do pequeno Fernand cresciam ainda mais escuros e formavam pequenos caracóis nas pontas. Procurava em vão a lembrança de algum parente a quem tivesse puxado e pela sua parte não fora. Os olhos eram de fato verdes como os de sua mãe e por mais que procurasse parecenças entre eles, sentia ao invés disto, uma raiva crescente em direção à alegria incontida de Vianca. Sabia que a mulher tivera amantes, durante sua vida conjugal ele não fizera questão de conquistar sua simpatia, muito menos o seu corpo. No entanto ela tinha conhecimento de que seus casos, tanto como os dele, tinham de ser discretos e mais ainda, não poderiam nunca lhe trazer um bastardo à porta. No fundo sabia que aquele menino não era seu, mas e agora: continuava com a farsa ou ameaçava tudo que sua linhagem conquistara até então? À medida que as pessoas iam tomando ciência da aparência do futuro rei, cresciam rumores de que este podia não ter legitimidade para reinar. Já cansado de ser alvo de intrigas, Philippe encostou literalmente Vianca à parede.
- Não sei do que o Senhor está falando. Este filho é teu, o sangue dos Bourdignon e Gautier lhe corre nas veias!
- Vou perguntar pela última vez antes de eu mesmo começar a apunhalar tuas criadas pessoais. - Calmamente o homem retirou a adaga e depositou no leito da esposa. Vianca tinha os cabelos soltos e suados, seu peito pulsava ao ritmo do galope de um garanhão selvagem. - Quem é o pai deste menino?
- Posso contar, mas o Senhor promete-me que não irá matá-lo?
- Prometo.
- Foi Stephane... - A mulher deixou cair o seu nome no silêncio carregado da expectativa do marido.
- Desgraçado...como pôde? - Esbravejou o rei ferido de forma fatal em seu orgulho. Poderia esperar de qualquer um, de François, o capelão, de Marc, o chefe da guarda, de qualquer camponês ou harpista, mas nunca dele... Jamais dele... Especialmente ele a quem confiava sua própria vida, suas filhas e seu espólio. Na verdade parte dele sabia, o rapazinho puxava-lhe o tamanho e muito de suas expressões. Se passasse mais tempo com ele, teria chegado a esta conclusão sem ao menos ter de perguntar à Vianca. Guardou novamente a adaga com os olhos pregados no rosto pálido de sua algoz: Vou matá-lo.
- M...mas tinhas dado a tua palavra de honra que não farias nada...
- E não vou fazer nada...ao menino. Já ao pai...nunca te alimentei esperanças, minha Senhora. Tu mesma é que o fizeste. - disse isto e saiu com meia dúzia de homens para além dos muros altos e sombrios. E a rainha desconfiava que o coração do marido jazia igualmente em um fosso tão fundo quanto o que separava o mundo do castelo de pedra.

Elisa (parte 5)

Stephane olhava para a tapeçaria pendurada no outro lado do quarto. Uma mulher nua em tamanho real rodeada de anjos, os seios com róseas auréolas lembrou-lhe Elisa. Mas esta ultimamente os tinha escuros enquanto amamentava o pequeno. Tinha saudades daquela potrinha selvagem, como a chamava em pensamento e, a imagem dela a pairar sobre seus pés delicados, seus cabelos longos em tranças cheirando a gardênias, invadiu-lhe como uma onda de melancolia sem fim. Fechou os olhos de forma a que a imagem desaparecesse, afinal não estava acostumado à tristeza, mas a escuridão apenas pareceu engoli-lo com suas mãos de fêmea ardilosa. Stephane voltou a abrir os olhos, o quarto na semi-penumbra lhe garantia que faltava pouco para o dia amanhecer. Suspirou devagar e levantou-se sem grande alarde, vestiu a camisa de dormir, passou os dedos nos cabelos desgranhados e deixou os aposentos da rainha. 
Vianca levantou-se bem disposta, aliás era difícil o dia em que não estava feliz aquando a ausência do rei. Sentou-se à mesa e começou a enfardar biscoitos de mel com um copo de cevada. Virou-se complacentemente para Aurélie, sua filha mais velha e ofereceu-lhe um dos doces de seu próprio prato. A menina pegou e colocou-o todo na boca, sem conseguir mastigar. Vianca desta vez fingiu que não tinha visto aqueles modos de "camponesa", tinha passado uma ótima noite e não era isto que iria lhe incomodar. 
- Onde está Monsieur Stephane? - Falou da foma mais fria e distante que conseguiu. 
- Está na cocheira com o seu cavalariço, minha Senhora. - Respondeu humildemente a criada.
- Manda-lhe encontrar-me no grande salão...após o almoço. 
Stephane entrou trazendo um pouco de barro nos pés. Tinha ainda os pingos da chuva nos cabelos e o manto sobre a armadura. Fez uma vênia e beijou-lhe a mão. Vianca se encontrava sentada no cadeirão de madeira escura em frente à grande lareira a bordar. Sorriu com seus olhos verdes a acompanhar seu rosto redondo e os cabelos ruivos presos no alto da cabeça. Toda ela sorria nestes últimos meses em que Stephane fazia-lhe companhia  noturna, em que aquelas mãos ávidas exploravam seu corpo roliço e um tanto esquecido da arte do sexo. Stephane fora o primeiro homem que tinha lhe dado prazer, tinha paciência para fazê-la extasiar-se com o orgasmo e quando este vinha, a fazia gemer como uma porca. 
- A Senhora precisa de alguma coisa?
- Senta-te, preciso contar-te.
O homem moreno e alto sentou-se em outra cadeira menor que era destinada às aias de companhia da rainha. Sentia-se quase a representar uma peça, como se soubesse o que era isto...
- Estou de esperanças, Stephane.
- Como assim? - Franziu o cenho surpreso com a ingenuidade ou burrice da mulher, que por certo tinha muitas formas de evitar tamanho desastre.
- Tu sabes como. Sou uma mulher que já não vai para nova, meu querido. Já passei dos trinta e só consegui dar ao Senhor Philippe três filhas e nenhum herdeiro. - Continuou fingindo não ver a cara de desgosto do amante. Passava a agulha para lá e para cá, desenhando a figura de uma cruz. - Faz muito tempo que ele não visita a minha cama e não acredito que tencionava fazer nos próximos anos... Eu não esperava realmente que isto voltasse a acontecer tão rápido. Não me cuidei e não me apeteceu tomar os chás.
- Não vos apeteceu?
- Eu vou ter este filho Stephane. - Os olhos verdes trovejaram de teimosia.
- A Senhora não sabe o que está fazendo...
- O rei voltará em uma semana, por acaso desconhece que depois da guerra nascem muitos "prematuros"?
- É disto que tenho medo.
- Pode ir agora. - Ela sorria triunfante.
Stephane saiu chutando o que encontrou pela frente, pedras, baldes, e quase o franzino cavalariço que lhe forneceu as rédeas do seu cavalo. Montou-o, deu-lhe com raiva na barriga e o animal saiu em disparada tomando o rumo dos celeiros reais. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Elisa (parte 4)

Elisa tinha escutado a parteira e tentava apertar a barriga, procurando algum sinal como aqueles que tinha lhe presenteado semanas antes. Um chute, um pé no umbigo. Nada. Permanecia tudo em silêncio dentro de si. Stephane preferiu dormir no quarto de hóspedes para lhe dar mais conforto e Marie dormitava encostada na cadeira ao lado da cama. Lágrimas grossas rolaram, entrando nos lábios, salgando a saliva. Nunca lhe passou pela cabeça pôr a vida do pequeno em risco, mas inconscientemente fora tudo que fizera nestes meses. Talvez fosse uma forma de machucar o marido ou a imagem de esposa que estava se tornando. Tola, tola! Repetia para ela mesma. Se pudesse voltar atrás... 
A mão continuava pousada sobre o ventre numa esperança teimosa de que ainda havia outro coração a pulsar além do seu. De repente, entre súplicas silenciosas à Virgem e ao padre Jacques, algo mexeu-se. No início pareceu uma revoada de pequenas bolhas e depois, de forma mais vigorosa, empurrou-lhe a carne formando um coto. A jovem sorriu entre lágrimas: 
- Ele vive! Ele vive!
Pela manhã, Marie trouxera um copo de leite morno e vibrou ao saber da novidade. Stephane surgiu somente durante a tarde, já aliviado por saber que estavam bem. A parteira achou melhor que a esposa passasse o resto da gravidez em repouso absoluto. Desta forma, por todo o período que faltava e inclusive na primeira quarentena do bebê, Marie ficaria a dormir no quarto ao lado para auxiliar sua senhora.
 O homem sentou-se muito próximo e em um movimento que não era comum, pousou a grande mão sobre a barriga de Elisa. Sentindo o toque, o pequeno ser revirou-se e pela primeira vez o Campeão do rei pôde sentir a vida que ajudara a gerar. Tinha os olhos úmidos e imaginou que por instantes quase perdera ambos. Apesar de sua vida notívaga, não estava mais acostumado a ser só. E se esta necessidade de ter os seus por perto era amor, não sabia, aliás, de amor não sabia nada além das canções dos  trovadores quando os havia na taberna. Com a mão desocupada, retirou um objeto do saco que trazia, colocando-o na mesa perto da cabeceira. 
- Toma, o padre Jacques garantiu-me que ainda não leste este aqui. - Beijou a mão da moça e deixou-a, ainda a tempo de escutar  um "obrigada" em uma voz tímida e fugidia.
Os dias passaram vagarosamente, já havia registrado todas as ilustrações do livro de horas que Stephane lhe ofereceu de aniversário. A parteira a visitava regularmente, pelo menos uma vez na semana. Era a forma do marido mostrar toda sua preocupação para com o destino dela e do rebento. Sabia que estava para parir a qualquer momento, sentia as costas doloridas, o peso dele em suas entranhas que a reviravam por completo até quase ter certeza de que a pequena parte de seu pulmão, habitava espremido na garganta. Naquele dia sentia-se particularmente enjoada, não conseguiu comer nada por mais que Marie insistisse. A criada notando seu mal estar, resolveu não se ausentar para muito longe. Quando Elisa tentou sentar-se, uma dor funda lhe percorreu a espinha e não muito tempo depois, um líquido quente jorrou pelos lençóis não sabe se trazendo alegria ou medo.
 A certa altura perdeu a noção do tempo. As vozes foram ficando cada vez mais pequeninas, a visão lhe parecia embaçada. Apenas escutava de muito longe: faz força! Empurra! E Elisa desmaiava com aquela dor que queria revirá-la do avesso. Gruía quando era acordada aos tapas pela parteira e pelos gemidos ansiosos de Marie. O quarto cheirava a sangue e seu próprio suor. Dava graças por não ver grande coisa além disto, pois se visse ia desesperar-se com a quantidade de panos encarnados que se encontravam encharcados. Ouviu a mulher gorda a falar para a outra que a criança não saía porque estava atravessada. Sentiu que ela depositou os braços pesados e fez força, girando sobre sua barriga. Empurra! Ouviu por entre dentes e obedeceu como se sua vida dependesse disto e na verdade dependia. Juntou as resmas de vitalidade que tinha e fez, seu ato encheu as mãos da criada que sorria enquanto um corpo minúsculo se debatia entre vagidos.
- Este nasceu com sorte. Ainda tem o verão pela frente para se fortalecer, quando o frio chegar já deve estar preparado. Só temos de garantir que ela tenha bom leite. Dê-lhe muita cevada. - dirigia-se à Marie que já tinha a criança mais ou menos limpa entre os braços.
Elisa dormia enquanto Stephane lhe beijou os lábios com Dominic no colo. Ela abriu os olhos e ele lhe confidenciou: é homem! Ela não fez qualquer menção de pegá-lo, estava completamente entregue à exaustão. Tinha lutado mais de doze horas e só o que queria depois de saber que estava tudo bem, era entregar-se ao sono dos justos.
Dominic chorava quando lhe tirava do peito. Mas Elisa sabia que não mamava, apenas gostava de sugar seus mamilos. O marido tinha lhe sugerido uma ama, podia lhe pagar uma camponesa das redondezas para vir algumas vezes por dia alimentá-lo, mas ela não quis. Já sentia-se mal o suficiente por  ter tido uma gravidez irresponsável. Olhou para o lado vazio da cama: Stephane se encontrava por trás dos muros do rei. Lá, naquele castelo o qual ele tanto falava e que tinha as melhores comidas e músicos que havia escutado. Elisa pensou com algum desgosto que por certo as mulheres mais belas também.
 Fazia quase um mês que não o via, para o seu azar Stephane era um dos cavaleiros de confiançaos quais o rei mantinha para guardar a rainha quando ele não estava. Viviam uma vida de guerras, em algum lugar sempre havia um herdeiro insatisfeito, um vassalo que não fora recompensado devidamente, um casamento mal arranjado, qualquer coisa que desequilibrasse o frágil sistema, explodia em disputas e mortes. Até quando todos os reis subjugassem sua sede de poder sob a égide de apenas um, Elisa imaginava que teria muitas noites ainda sem o marido por perto. Estranhamente sentia sua falta, quando não bebia, Stephane era um marido atencioso e um bom pai que garantia-lhes que nada faltasse em sua casa.
O filho aprendeu a segurar sua própria cabeça e ela sorriu enquanto lhe acariciava os cabelos negros e finos:
- Agora que já  ergues o maior bem que possues, nunca meu Dominic, nunca a abaixes para ninguém que não mereça.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Elisa (parte 3)

Pela fresta exígua da janela pôde precisar que o dia já ia alto. Há quanto tempo não acordava tarde? Talvez apenas nos dias festivos, em que a vila enchia-se de estrangeiros e música regada à cerveja e dependendo da importância e das condições dos convidados, a vinho. Ao seu lado jazia Stephane completamente afundado em ronco e saliva. Livrou-se de um de seus braços fortes e com cuidado foi levantando da cama. Quando já ia a meio caminho, uma de suas mãos graves segurou o que restava de sua camisa de dormir. 
- Onde vais? - Perguntou-lhe a voz recém vinda do sono.
- Já está na hora de levantar, preciso fazer algo para comermos...
- Não, hoje ficamos por aqui. Já dei ordens para isto. Talvez esteja ali na porta alguma coisa para pormos no estômago. 
Elisa revirou os olhos, mas encaminhou-se até a mesma e trouxe o prato de cerâmica com algumas frutas rodeadas por pão e banha. Em uma mesinha de apoio havia uma jarra de água e uma taça. Serviu-se demoradamente sendo apreciada por olhos que lhe comiam os gestos. Uma nesga de sol entrou pela fresta denunciando alguns buracos de cupim na janela de madeira. O quarto iluminou-se de imediato. Stephane levantou-se já com o pênis ereto e lhe abraçou por trás. Elisa em uma tentativa de adiar o inevitável pôs-se a procurar vestígios de sangue nos lençóis. Agora entretinha-se a passar as mãos e retirar as cobertas, Stephane divertia-se com a cena enquanto mordiscava um pedaço de pão.
- O que procuras?
- Não há sangue? Não há sangue! Como pode se eu sou...era virgem?
- Mitos... acalma-te minha pequena. - Disse beijando sua testa. - não é assim com todas. Eu senti quando rompeu, fica descansada...sei que mais virgem que tu não havia.
A jovem pareceu convencida e ele finalmente a carregou de novo para a cama. Desta vez demorou-se  em carícias e beijos para só então penetrá-la com mais cuidado que na noite anterior. Stephane não sabia ao certo o porquê de ter aceito a proposta de Elisa, afinal era forte o bastante para carregá-la até alguma cocheira que fosse e fodê-la entre montes de feno. Mas não estava acostumado a isto. As mulheres sempre vieram de muito boa vontade dividir-lhe o leito, apenas aquela potrinha chucra fugia de seus braços como o diabo da cruz. E isto deu-lhe um objetivo na vida sempre que não estava peleando ou em competições pela honra da coroa. Tinha de a ter a qualquer custo, tinha de domar-lhe as carnes, de fazê-la fêmea como todas as outras. Mesmo que isto o fizesse assentar como um homem de família, até porque com vinte e oito anos já passava da hora de pensar em um herdeiro.  Desta vez fizera de forma tão convicta que quase ouviu um suspiro de gratidão escapar por entre os dentes de Elisa.
Os dias passaram e com eles a falta do período anunciou-se logo no segundo mês de casada. Sentia vertigens cada vez que se fazia dia e já acostumava a manter-se sempre perto de algum balde ou jarro. Quando confirmou as suspeitas e contou que ele ia ser pai, Stephane já sabia-o há muito tempo. Decerto tinha os seus bastardos por aí, criados muitas vezes como filhos legítimos sem qualquer suspeita.
 Sempre que via uma mulher grávida geralmente rodeada de cuidados se fosse rica, imaginava no quão tolo podia ser viver de aias e criadas até para limpar-lhes a bunda. Pois com ela jamais seria assim: fez questão de fazer tudo o que fazia antes, na casa do senhor Castel. Tirava o leite da vaca, sovava o pão e o assava, fiava, lavava o chão, mesmo quando advertida por Marie morta de medo por permitir tal disparate.
Rapidamente Elisa viu que a gravidez era um bom motivo para afastar o marido, que por sua vez caía ainda mais nos braços de outras mulheres. Chegava tarde, cheirando a cevada e essência perfumada, e quando raras tentativas de lhe ter ressurgiam, ela colocava a mão na barriga e fingia dor.
Quando notava que o marido saía, puxava de um dos livros que padre Jacques lhe confiava e desta forma encontrava refúgio a sua vida de vaso precioso. Desta vez distraiu-se de tal forma que não percebeu os passos do marido a chegar no quarto, desapontado por inadvertidamente ter esquecido o anel que o rei lhe ofereceu e que só tirava do dedo para dormir. Ao ver a mulher absorta com um livro na mão, Stephane engrossou a voz:
- O que pensas que estás fazendo? - Antes que tentasse esconder, ele arrancou-o das mãos e tentou soletrar muito vagaroso - D-a...Dan...te. Tu sabes ler? Quem te ensinou a ler?
Elisa tremia em um nervoso louco de lhe jogar toda a raiva acumulada pelo ostracismo feminino.
- Não precisa dizer nada. Já sei quem foi! - Dirigiu-se para a porta.
- Ele, ao contrário de ti, é um homem de verdade! Tem mais colhões que tu e muitos por aí.
Stephane levantou a mão pesada pronta para desferir-lhe um tapa, mas estacou-a no ar ao lembrar do filho que ela carregava.
- Não me obrigues a tomar providências disto. - E saiu com passos pesados batendo a porta atrás de si, deixando pousado no canto da mesa o anel pelo qual voltara.
Era um fim de tarde como todos os de um inverno punitivo em França, céu nublado já virando noite e barro misturado com neve. Com uma barriga de seis meses atrapalhava-se na roca, tinha de manter as pernas mais abertas que o necessário. Olhava para a rua e xingou em pensamento a criada por ter esquecido de trazer mais lenha para o fogo que findava. Olhou para a pequena chama que agonizava e tornou a virar para o monte de tocos já cortados por Valentin, o rapaz coxo e filho de Marie. Estava sozinha sabe-se lá até que horas, quando o marido resolver que já cantou, trepou e bebeu o suficiente para voltar à casa. A criada já havia se recolhido juntamente com o filho e voltaria antes do dia amanhecer. Stephane não gostava de outras pessoas além deles em casa. Elisa ergueu-se de encontro à capa e fazendo força para proteger a barriga do frio, desceu os degraus em direção à neve. Seus pés afundaram e rapidamente sentiu-se invadida pelo gelo, caminhou até a pilha e depositou um a um dos tocos no cesto de vime que havia trazido. Quando não restava mais nenhum no solo, fez força e depositou-o no meio do braço direito, fazendo o caminho de volta com algum esforço. Chegou em frente à lareira da sala, ajoelhando-se com cuidado e começou a jogar a lenha fria e soprar devagarinho. Quase perdiam-na com a umidade e teriam de deixá-la secar dois ou três dias para utilizá-la. Sentia uma pressão na barriga, estava dura, mas já havia sentido isto antes. Elisa agora satisfeita pelo calor voltar ao seu corpo, olhou para baixo e soltou um grito, seguido de uma pontada lancinante. Pela luz amarelada notou que tinha a saia do vestido coberto de sangue e atrás dela, um rastro encarnado a acompanhou desde os primeiros passos na neve. Quis arrastar-se até a cama, mas não tinha forças. Gritou o mais que conseguiu por Marie, mas sabia que seu apelo nunca seria ouvido. Até que por fim, depois de desesperar-se em choro, desfaleceu exausta sendo guardada apenas pelo fogo, que dançava em uma tentativa de a consolar.
Stephane a encontrou enrolada sobre seu próprio ventre, em  posição fetal, e o susto de perder a mulher e o filho que esperava, o fez desvencilhar-se do estado embriagado para correr à Marie e depois atrás de alguma parteira. Deixou a esposa deitada, enfiada em um monte de travesseiros e sob os cuidados da criada. Elisa respirava com dificuldade, tinha a boca seca e a fronte molhada de suor. Ao abrir as pálpebras suavemente como a espantar a dor, viu uma mulher gorda com os seios muito grandes quase a sair da roupa. Ela estava a poucos centímetros de seu rosto, tão perto que podia antever-lhe o buço e sentir o hálito. Apalpava a barriga e pôs-lhe a mão dentro da vagina, arrancando-lhe um gemido.
- Então? Está tudo bem com ela?- Perguntava Stephane com medo na voz.
- Sim, ao menos por enquanto.
- E o bebê?
- Não mexe.
- Como assim não mexe?
A mulher olhou-o e sua boca fina em silêncio, preferiu não pronunciar a resposta.
- Vamos ver, se em dois dias tiver febre, teremos de expulsar. - Disse isto enquanto lavava as mãos na bacia com água morna que Marie tinha trazido. Tornou a colocar o xale e saiu deixando Stephane no quarto cheirando a sangue e morte.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Elisa (parte 2)

Ao cair da tarde, aproveitou que tinha de pegar duas galinhas em seu Fontier, o homem calvo e baixo que por ser viúvo, às vezes lhe pedia para coser alguma roupa e em troca lhe pagava com ovos, farinha e o que tivesse disponível e que ela assim o escolhesse. Entregou-lhe as duas camisas de dormir em um saco de linho e recebeu a gaiola com os animais ainda vivos a bicarem constantemente meia dúzia de milhos no chão de madeira. Agradeceram-se mutuamente e ela saiu já pensando no trajeto que faria, passando na frente da taberna que Stephane costumava ir antes do anoitecer. Ao se aproximar, pode ouvir sua gargalhada vigorosa. Asno, pensou. Bateu com força os pés e agitou as galinhas para que cacarejassem quando avistasse a frente do estabelecimento. De fato lá estava ele rodeado de mulheres penduradas ao pescoço como se formassem um colar humano, acessório que dispensava facilmente ao vê-la em seu vestido verde escuro. 
Elisa não era particularmente bonita, nem gorda como se queria as damas, com carne farta para agarrar no coito. Mas era ao contrário, de uma delicadeza invulgar, seus pés eram tão pequenos que pareciam angélicos, os seios eram também diminutos e duros, mal balançavam quando fugia de si. Os cabelos lustrosos e fortes como a crina de seu cavalo, especulava Stephane, faziam sua dona tão arredia como o outro, e sorriu ao desvencilhar-se das jovens, seguindo o vulto de Elisa. 
Poucos passos de suas pernas longas, alcançaram-na e logo tinha seu hálito alcoolizado a esquentar a nuca desnuda da moça. Elisa estremeceu, parou por segundos de sacudir as galinhas que por certo aninharam-se já extenuadas.  Stephane agarrou seu braço e puxou-a para seu peito largo. Desta vez, não se debateu, notou-lhe apenas um suspiro ainda que seu corpo estivesse tenso à proximidade. Com as mãos pesadas agarrou-lhe nos ombros e abaixou os lábios em direção aos dela. Elisa desviou-se a tempo.
- Preciso falar contigo.
Stephane largou a fileira de dentes bem formados enquanto os olhos cobiçavam seu decote. Tinha por certo que a teria aquela noite, pensava rapidamente apenas em um lugar discreto  para levá-la de uma vez, antes que desistisse. 
- Fala, minha querida.
- Stephane, não vou deixar tu deflorar-me. Não. - O sorriso desapareceu. - Se me quiseres realmente será sob o teu teto e como tua mulher de direito. Não serei só mais uma rameira...
Ele fechou os olhos mordendo levemente o lábio inferior, depois enroscou os dedos em seu cabelo em tranças e disse-lhe, desta vez a ver-se refletido nas esferas nebulosas de Elisa:
- Está certo. Se é assim que queres, assim será. Amanhã cedo falarei com o senhor Castel para formalizar minha intenção....mas depois de tudo isto - fez um gesto vago com a mão que despegou-se de seus fios - tu serás minha. Só minha. - E voltou a tentar aproximar-se da boca rosada, mas encontrou apenas a bochecha de Elisa. Ela deixou-o só a observar sua silhueta a diminuir cada vez mais, até não ser mais perceptível e transformar-se apenas na noite. 
O dia embranqueceu, era a forma como via dia após dia de céu cerrado de nuvens, de frio, em que o sol demorava a pousar e quando o fazia, desistia logo de tanta tristeza e lama junta. Elisa abriu os olhos uma hora antes disto, para falar a verdade sequer dormira, revirou-se a noite toda em sua cama dividida com as outras duas filhas do senhor Castel. Era hoje que Stephane ia pedir-lhe a mão (ou o seu corpo) em casamento. Sabia que não possuía dote e que seu tutor não lhe ia tirar de suas filhas legítimas para dar a ela, mas também sabia que o velho ia sentir-se livre do fardo de a ter em sua casa. Talvez já tivesse começado a pensar em dá-la para algum camponês que lavrava suas terras, era uma forma barata de a ter sempre por perto para os serviços gerais que já fazia e ao mesmo tempo não gastar mais com ela. Ironicamente no dia que mais a interessava ficar em casa para espiar o seu destino, Aydee sua mãe de criação, mandou-a ajudar sua irmã que estava muito doente. Preparou uma cesta com pão e sopa de aveia, algumas frutas e foi com a pequena carruagem que lhe designaram, tendo ordem para retornar apenas quando esta estivesse a andar novamente. Deixou um bilhete antes de sair ao padre Jacques, escondido entre as primeiras folhas de sua bíblia de estimação, a explicar o contrato de casamento. Duas horas depois estava a avistar uma pequena propriedade cravada em meio a uma plantação de trigo. Três cachorros vieram ao muro avisar que havia alguém estranho nas proximidades. Ao fundo, na porta entreaberta, surge um rapazote a volta dos oito anos que silencia os bichos eriçados e a convida a entrar. Elisa coloca os pés sobre o piso de madeira que rangia a qualquer movimento, depositou a cesta sobre a mesa e seguiu o menino em direção ao quarto de sua mãe. Havia mais três ou quatro crianças pela casa, sendo uma delas ainda bebê de colo. Quando viu a mulher a gemer na cama rodeada de alguns pares de olhos infantis, Elisa pensou que se fosse apenas um resfriado ainda ficava ali presa uma semana ou duas. E seus dias foram de cozinhar, limpar, lavar, cuidar dos pequenos, já que a criada da casa estava em resguardo de parto e ainda não haviam arranjado quem a substituísse. Ouviu falar em uma prima que chegaria há três dias talvez, mas não veio. Os dias foram tão preenchidos que mal sobrava tempo para pensar em Stephane. Elisa emagreceu a olhos vistos, mas sentiu-se feliz quando finalmente a mulher conseguiu andar sem a sua ajuda e ainda mais quando os cachorros saudaram a tal prima da criada que havia chegado. Sua missão estava cumprida.
Mal entrou pelos fundos da casa, o senhor Castel lhe chamou à sala. Ouviu sua voz rouca e viu a mão pousada sobre o descanso da cadeira. Elisa mantinha a cabeça baixa e os dedos entrelaçados. 
- Tenho uma notícia para te dar. - Passou a mão rechonchuda pela cara e terminou coçando a barba ruiva. - Já estás na idade de casar, Elisa. Na primavera farás quatorze anos e ainda não tinha pensado seriamente em um pretendente para ti. Cresceste tão rápido - Olhou-a com o corpo franzino e ainda mais magro do que antes. Era quase um contrassenso o que acabava de dizer. - Tiveste sorte, Stephane o Campeão do rei quer a tua mão em casamento. Sinceramente não sei o que viu em ti, mas parece que tem pressa! Agora vá, outra hora falamos sobre o o resto... 
Elisa fechou os olhos como se um trovão lhe tivesse passado com força pelas veias. Sentia-se estranha, não parecia ser a mesma que habitava seu corpo, sentia uma repulsa e ao mesmo tempo uma força animal que a impulsionava para o meio da tempestade. Uma força que vinha de dentro, de baixo, e latejava cada vez que seus olhos cruzavam com Stephane. Todas as noites aproveitava a luz avarenta de uma vela para costurar o seu melhor vestido, com o qual casaria no próximo mês. Ele por sua vez estaria em campanha com a guarda do rei a fim de silenciar meia dúzia de homens que se insurgiam contra a alta dos impostos. Retornaria bem a tempo de esperá-la na igreja. 
Stephane surgiu em sua armadura, agora menos brilhante e com alguns amassados e arranhões de espada e foices. Abriu-a, retirando também a malha de ferro. Sempre a olhar para ela foi baixando a calça, retirando os sapatos até ficar completamente nu. Nesta altura Elisa virou-se para a parede, ele chegou-se afastando seus cabelos soltos para o lado. Esfregou o peito com poucos cabelos negros e isto provocou-lhe um arrepio na espinha. Stephane ia desabotoando o vestido com a destreza de  anos a despir mulheres. Desceu os dedos pelas cordas do espartilho desapertando-o de forma que Elisa pudesse  respirar normalmente. Fê-la abrir os braços e deixou-a apenas com a camisa fina que a cobria até a metade das coxas. Deitou-a beijando com sofreguidão a boca enquanto enfiava a mão à procura dos seios virgens e pontudos. Elisa não sabia se mantinha-se presente ou se viajava para algum recôndito de sua mente, sentia-se a flutuar para fora do corpo e a julgar-se tão reles como as outras mulheres a quem de forma perversa tinha traçado destino igual. O membro lhe rasgou a inocência e depois disto sabia que não haveria volta, nem mesmo ao convento que padre Jacques se referira, a menos que o consorte morresse. Estava agora presa para a vida toda. Os gemidos altos e ritmados de Stephane e depois o corpo inerte que lhe caíra por cima, selou-lhe a sorte como uma porta pesada de uma masmorra a fechá-la na escuridão.


Elisa (parte 1)


Andava com passos cuidadosos como se isto fizesse com que seus pés pequeninos deixassem de afundar no barro escuro, manchando os sapatos de sempre. A maioria das pessoas estava acostumada a não olhar para a sujeira das barras dos vestidos, das calças e sapatos dos homens. Fazia parte do cotidiano inclusive dos ricos a arrastarem seda e couro pelo mercado da vila. Sabia disto, mas ela não conseguia desviar o olhar do chão e esconder o desgosto de ver o trabalho que deu para lavar a roupa, estragado em  poucos minutos. Tão pensativa estava que não o viu com a armadura brilhante estacado à sua frente. Esbarraram-se. Embarraram-se (ainda mais). Elisa resmungou baixinho que um homem com armadura imaculada era sinal de que ainda não tinha enfrentado a guerra e não devia se orgulhar disto. Era o Campeão do rei, Stephane que apesar de tudo era o homem mais bonito da região. Alto, muito alto pelo menos para ela em seu metro e meio, cabelos escuros e revoltos pelos ombros e um sorriso galante que mantinha sua cama sempre aquecida por qualquer fêmea em que debruçasse seu charme. Elisa nutria profunda antipatia por aquele jeito leviano de cavaleiro-mor, daquela arrogância para quem a sorte sorria vezes demais. Desvencilhou-se de suas mãos garantindo-lhe que estava bem e correu a tempo antes que uma de suas garras enormes lhe apalpasse os seios disfarçadamente.
Correu para a capela em busca de algum conforto. Ajoelhou-se na pedra fria, sentindo um certo prazer naquela dormência que ia subindo pelos joelhos acima até chegar-lhe em seu sexo. Padre Jacques que havia observado o furacão de Elisa, pousou sua mão torta e velha sobre os cabelos negros que serpenteavam até a cintura. Tomada de assalto, seu peito disparou como se a simples presença do padre, aquele que de certa forma a criara como uma filha, a desnudasse todos os pensamentos em revelia. 
- O que houve minha filha?
Elisa aspirava silêncio, contida e ofegante ao mesmo tempo. Sua face ruborizada de ódio e culpa. Por alguns instantes bastou olhar para a cara de madeira da Virgem, rodeada por anjos gordos e sem expressão. 
- Acho que eles não nos ouvem.
- Como? Quem não nos ouve criança?
- Padre...porque tanto sofrimento, porque tenho os joelhos ardidos pela senhora Albertine que nos castiga e se ri que nunca iremos aprender uma vírgula que seja, um número para fazer contas à capas e mantas...e se é para isto que servimos, que somos nada além de vasos a gerar vida, preciosos quando as há e vazios e sem valor quando parimos, para que viver?
O velho arqueado gentilmente cedeu o lenço branco e começou a enxugar as lágrimas que brotavam vindas de um poço muito fundo da alma. Sacudia a cabeça e sentiu-se grato por mesmo às escondidas lhe ter ensinado a ler e escrever, sendo um segredo que por certo lhes custaria a vida de ambos caso alguém o suspeitasse. Depois de notar que os soluços se espaçavam, ajudou-a a levantar-se e sempre com as mãos paternalmente nos ombros a levou a sua humilde biblioteca na sacristia. Retirou um volume de capa carmim e quase desfeito em pó e lhe depositou nas mãos em concha. 
- Toma minha filha. Aqui está uma coisa para distraíres-te.
Elisa olhou novamente em redor, confirmando que não havia ninguém por perto e depositou em um gesto rápido, o precioso contrabando sob um bolso em sua capa, costurado para este fim.
Sorriu e fazendo uma pequena vênia, beijou-lhe agradecida as veias saltadas das costas de sua mão. Em um movimento brusco soltou-se do padre e desapareceu pela escuridão da igreja rumo ao céu aberto.
Órfã de pai e mãe em tenra idade, fora criada pela família Castel, um pouco mais abonada que a sua própria, porém muito longe de ser rica. Cresceu mais para servir do que para ser uma filha legítima da casa e era constantemente lembrada da sorte que tivera por isto. Era a primeira a levantar-se e a última a deitar, garantindo que tudo estivesse conforme seus tutores gostavam. Sempre que podia escapava para a igreja com a desculpa de rezar, no entanto era nestes pequenos e raros momentos que aprendia a magia de desenhar sentimentos. Lembrava-se agora da conversa tida outro dia com o padre sobre o que fazer de sua vida. Finalmente tinha tido coragem para relatar os assédios constantes de Stephane, inclusive de sua tentativa frustrada de violá-la a caminho de casa. Jacques mirou-lhe com as bolsas de cansaço por baixo dos olhos trêmulos, sorria tristemente quando lhe disse:
- Criança...o que esperas da vida? Case, já estás em tempo de traçar o teu destino. O que será da tua velhice sem filhos que olhem por ti? Se entretanto preferires o convento, posso indicá-la para a madre Justine...
Elisa puxava as mangas do vestido obstinadamente enquanto balançava a cabeça em negativa. Jacques lhe afirmara para casar com Stephane que não era tão mau assim, era um homem como os outros e que qualquer dia ainda podia-lhe pegar desprevenida e conseguir ter sucesso em seus desejos. Mais valia ser sua esposa e ter sua própria casa, quem sabe com um ou dois criados para ajudarem-na. Era uma vila pequena, em um reino por sua vez não muito extenso e Stephane sempre dava jeito de se por em seu caminho. Havia tomado uma decisão, só não sabia se escutava ao padre ou seu próprio desejo disfarçado de ódio.

* Trata-se de um auto-plágio: despudoradamente inspirado em um sonho que tive.
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