domingo, 31 de maio de 2015

Simplicidade é tudo




Tudo começou quando vimos um videozinho destes que está muito na moda na internet, de um menino que não devia ter mais que a idade do Fabian tocando piano divinamente. O marido de boca aberta solta um "Bahhh, impressionante" e eu já saio com: tá vendo, isto que é dom. Começamos aquelas conversas que algumas pessoas só conseguem ter na mesa do bar enquanto bebericam uma cerveja, nós fazemos isto no sofá da sala (por falta de algo melhor). 
O mundo para mim sempre esteve dividido entre pessoas talentosas porque tem o dom, aquelas que tem o dom da técnica e aquelas que tem jeito. Não significa dizer que quem tem o dom nasce sabendo tudo, mas que um pequeno estímulo serve como gatilho para a exposição de determinada habilidade e uma vez que este indivíduo tenha meios, mesmo que sejam precários, o talento se desenvolve rapidamente com ele à medida que o pratica. Quem é bom porque treinou muito, consegue chegar  perto dos primeiros e às vezes é difícil  distingui-los. Os que tem jeito são a maioria da população que por motivos vários desistem  de suas aptidões. 
Eu sou uma que tinha jeito para o desenho. Lembro de inclusive ser a escolhida para desenhar um cartaz em nome de todos os alunos da escola porque era a única criança que conseguia razoavelmente desenhar uma mão. Assim como recordo do contrabando artístico que eu fazia desenhando para os meus colegas  reproduções de pintores da Semana de Arte Moderna. Nunca me senti tão popular como naquela época. Mas vai saber, isto não despertou a atenção da minha mãe, imagino se fosse alguma área das exatas se não ia ter participado de "oficinas" e coisas do tipo. 
Quando eu tinha sete anos, o tema era fazer uma redação sobre as férias e eu fiz sobre uma viagem com o meu pai*. Ele veio me buscar em um avião de madeira vermelho, nós passamos pela cidade e vimos as pessoas bem pequeninhas lá  embaixo e no final "tudo era ilusão". A professora chegou a falar para a minha mãe que admitiu-se impressionada. Naquele tempo internet era um sonho distante e as crianças tinham menos expectativas nas costas...
Não acho que tenha o dom, eu acho que tenho jeito para escrever, embora hoje pudesse ter mais se não fosse a preguiça e auto-comiseração companheiras constantes. Uma das coisas que diferencia as pessoas que tem o dom das outras, é a simplicidade em tocar um monstro que é um piano com trocentas teclas, fazendo com que pareça com um afago que se faz a um cachorro peludo. Pessoas assim fazem pensar que até eu poderia  aventurar-me sem sofrer um arranhão. Pessoas como o Leonardo Sakamoto que brincam com as palavras com uma destreza tão linda que apetece a qualquer um  afinar o alfabeto e compor uma canção.

*Meu pai nunca me assumiu nem financeiramente nem emocionalmente. Tudo que lembro dele foi o primeiro e último encontro que tivemos quando eu tinha cinco anos.


"Primeiro, foram os nomes dos netos. Depois, a literatura que amava. E ela foi largando sua bagagem. Foi estranho, mas o Alzheimer lhe concedeu o direito a uma lembrança. O que é forte o suficiente para vencer o vazio? Para ela, o primeiro encontro com o marido. Passava as tardes na janela, esperando. Ele, todos os dias, por um ano, trouxe margaridas. Numa noite, disse: “Não precisa mais. Já te amo”. E dormiu."


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"Raquel ensaiava a entrada triunfal na Sapucaí há anos. Perto de fevereiro, adiava a fantasia. Até que um câncer lhe deu direito a apenas mais um Carnaval. Juntou economias, pegou um ônibus e só parou quando cruzou a Apoteose. Enfim, estava em paz. No seu último dia, riu da pressa do repórter que cumpria uma pauta. “Não é o tempo que passa voando. É a gente que atropela a vida.'' E confessou: “Vou viver para sempre''.


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"Ele sabia ler a chuva. E escrevia pela enxada. Sua tristeza eram as mãos, feridas pela necessidade. Por nunca ter segurado um lápis, fez o impossível para seu menino. Na hora da foto de formatura, plantou fundo as mãos nos bolsos da calça surrada, com medo de envergonhar o filho doutor. Com carinho, o rapaz as colheu, abriu feito palma de flor e desferiu longo beijo. Desde então, Emanuel sorri quando olha para elas."

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"Vó curava os dias tristes com bolinhos de chuva e esticava as manhãs leves com broas de milho. Cair da bicicleta dava em galinhada; perder um dente, em sorvete de nata. E para dor de saudade, vó? Ela sabia que, para isso, não havia receita, pois durante anos tentara cozinhar a perda do vô. E jogou o soluçar do neto no ombro, tirando o amargo de sua boca e enganando o vazio."

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"Fazedor de arco-íris, seu avô dizia que era dele a tarefa de pintar os céus depois de tempestades. Ao fim de um aguaceiro, ele se refugiava no velho moinho, girava a roda d’água e uma curva colorida se abria no horizonte. Orgulho. Quem além dela tinha avô poderoso assim? Até que, em uma tarde sem nuvens, o coração do velho desabou sobre a plantação. Ela, em prantos, correu para o moinho a fim de pintar para ele. Girou, girou, girou, mas nada. Vendo tristeza tão sincera, o céu se encolheu e chorou. E o mais belo arco-íris que o mundo já viu se fez."

Eu e esta minha mania de musicalizar a vida

Não tem vez que resolvo escrever sobre qualquer coisa que uma palavra não leve a outra, que leva finalmente a uma canção. Ia falar sobre as gaivotas e no quanto é difícil se escapar da merda, venha ela de cima ou debaixo. Estava atravessando a rua outro dia e senti que alguém havia me atirado uma pedra, só que era uma pedra verde e gosmenta. A primeira vez a gente nunca esquece...
 Tem quem tenha periquito de estimação, cocota...minha vizinha do prédio em frente tem uma gaivota. Agora falando assim ficou parecendo aqueles poemas toscos, juro que não foi a intenção! Bicho sacana que é gaivota. Come de graça e ainda caga tudo e depois ri. Cada vez que escuto ela "rindo" à la Fafa de Belém, imagino que tenha acertado  na cabeça de alguma criatura. 
Quando fiquei sabendo que O Pato de João Gilberto ganhou uma versão francesa, pensei se não ia começar com ~ a gaivota vinha cantando alegremente (nhén nhén) quando a pomba sorridente pediu para entrar também no samba (no samba, no samba). Samba Dingue ou samba do maluco, toca em looping na minha cabeça e no mp3 também. Não tem aquelas musicas que se tem medo de enjoar, mas que a vontade de escutar é sempre mais forte? E não é que a língua  de Molière tem tudo a ver com samba? "é por tudo, quando eu penso que sou um maluquinho, quando misturo o francês ao Brasil", bem melhor do que o suposto samba que uma gaivota, uma pomba e um cisne (nunca disse que mora um casal de cisnes bem na esquina onde o rio se encontra com o mar?) poderiam fazer. Mas isto eu sou suspeita para falar, porque sou dingue, dingue, dingue como diria o Raul, maluca beleza, pelo samba. 


terça-feira, 26 de maio de 2015

Do pau no gato ao rato verde





Mais uma para aquela torta na cara básica que imagino quando alguém solta um "só no Brasil":
A dona Chica (cá-cá) admirou-se com o berro que o gato deu, mas será que ela faria o mesmo com os "messieurs"* que ao verem o  rato pego pelo rabo, sugerem que o joguem no óleo, depois na água quente para fazer como se cozinha o caracol?

A musiquinha "Une souris  verte" anda tão na moda aqui em casa que tem dias que às vezes dou por mim cantando a má sorte do ratinho. Ô dó!


* senhores

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O Fabian aprende sobre auto-controle

Veio todo feliz semana passada segurando uma figurinha de álbum com aqueles bichos feios que nunca sei o que são. "Viu, mãe, eu que ganhi! Eu si comporti!" Dormiu com ela amassada entre as mãos e no outro dia queria levar para a escola. Parece que o sistema é assim: cada dia antes da saída, a professora decide se o comportamento foi bom ou mau e conforme for, a criança ganha um "soleil" ou uma "nuage"* no quadro ao lado do seu nome. Cinco ou quatro soleils dão direito ao prêmio, como diz o Fabian, o "prêmio de levar para casa". 
Quando pergunto-lhe como passou o dia, ele me olha com a cara mais feliz do mundo e com as mãos ao lado do corpo duras e os punhos fechados, diz : "Eu si comporti mãe, não bati em nenhum dos meus amigos". Isto segredado em uma mistura de naturalidade e orgulho, como se não fosse uma obrigação social controlar tais impulsos. E eu? Sorrio de alívio, claro... Haja tempo para que a recompensa seja  comida, cigarro, futebol ou sexo. Formulas de escape de adultos, não tão inofensivas quanto uma carta amassada entre as mãos.

* Sol ou nuvem.

Blue eyes



Há certas profissões que qualquer decisão pessoal mal tomada pode resultar em uma grande merda para os outros. O primeiro pensamento geralmente foge para os médicos, enfermeiros, socorristas. Ninguém pensa em um simples funcionário administrativo cujo serviço seja apenas apertar com força um carimbo. Talvez seja porque a morte é por demais definitiva que erros banais que podem mudar vidas, adquiram contornos de "ups, foi mal aí", quase como se fosse alguma desculpa cármica para as coisas terem corrido assim. 
Geralmente não vejo filmes brasileiros pelo hábito simples e idiota de estar acostumada a ler legendas. Embora tenhamos filmes muito bons, também já me cansa ver coisas só relacionadas ao triângulo amoroso Rio-tráfico-violência como se não fôssemos nada mais do que isto, como se a calçada de Ipanema se estendesse até o litoral gaúcho e que Tom Jobim fatalmente caísse de amores por uma loira ao invés de uma cabocla vinda de Guarani das Missões. Já que todo mundo sabe que a única beleza cheia de graça só é produzida na zona sul e ela tem os cabelos dourados e o corpo esguio...
Blue Eyes é um filme brasileiro que é 90% falado em inglês, pois conta o episódio de um agente de imigração que resolveu tomar um porre no último dia antes de se aposentar. Ele e uma colega resolvem brincar com uma dezena de imigrantes que aguardam autorização para entrar nos EUA. Entre eles, uma cubana, um casal de argentinos, um grupo de atletas colombianos e o brasileiro "Nonato". Tirando a licença poética, é um retrato puro e duro do que acontece nos bastidores da imigração. Racismo, xenofobia, abuso de poder: todos estes bichos loucos e raivosos soltos, com a ressalva deste histerismo estar dentro da lei. 
Blue Eyes conta com apenas um ator conhecido: Frank Grillo, mas isto para mim é até um ponto a mais. Gostei principalmente quando começa a se questionar sobre quem é mais americano ali, o chefe loiro e de olhos azuis, a colega negra e o "latino" nascido de pai mexicano e ilegal. Porque sem dúvida que há sempre uns que são filhos e outros enteados de uma nação "de todos".

Amigas

Chegou atrasada como sempre. Desde que se casara com aquele dentista da zona sul que a amiga andava mudada, não  havia dúvidas  de que o novo status lhe subiu à cabeça. E lá vinha com os seios apertados em um decote florido. "Quanto será  que haviam lhe custado?",  mas endireitou o sorriso para oferecer três  beijinhos.

- Desculpa o atraso, mas o Beto... - Lágrimas  despencaram deixando um tênue  rastro de rímel. - Eu... eu...nós... - Escondeu os soluços sob as mãos.

Cláudia  ficou por instantes sem reação, até  lembrar-se de alcançar um guardanapo que sobrou do café. A amiga pegou rapidamente e pôs-se a enxugar a maquiagem mais do que os próprios olhos. Ela não pôde  deixar de notar a aliança mais estravagante que já vira: um grosso anel de ouro com um diamante solitário  no meio. Colocou sem jeito o braço em seu ombro nu e deu-lhe tapinhas enquanto fazia o chiado com os lábios, o mesmo que costumava acalmar o filho. "Vai ficar tudo bem, calma..." Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, a amiga suspirou e soltou as palavras como se soltasse um pum que há muito pedia para sair.  

- Vamos nos separar. - Depois veio a cara de alívio.
- Separar, Su? Como assim separar? Vocês recém casaram! 

Agora era a amiga que soltava gritinhos histéricos. Susana sorria com seu batom cor de ameixa e tamborilava as unhas de gel de bolinha saboreando cada expressão de Cláudia. Quem diria que seria ela a chutar aquela bela bunda do Beto? A bunda empinada e redonda, junto com o tanquinho depilado, com as coxas musculosas e os bíceps de quem conseguia trepar a segurando por quarenta minutos? Havia a amiga por acaso colocado botox nos neurônios? Beto...se ao menos naquele dia o filho ranhento não estivesse doente e a obrigado a ficar em casa, então talvez....talvez ela tivesse tido uma chance. Isto se desconsiderasse a diferença visual que havia entre ela e a amiga. Podia-se imaginar sentada ao seu lado enquanto ele chegava e a convidava para dançar. E no fim a amiga lhe deixaria a bolsa para cuidar enquanto partia com aquele belo par de olhos verdes. "Ele nunca me olharia mesmo..." Conferiu vagamente os seus quadris, lembrando das fotos que havia visto da lua-de-mel no facebook. Ela curtiu, mas só  para não despertar desconfiança, porque de tudo que havia passado em sua cabeça, "like" não era de longe a primeira. Beto e Susana no mar do Haiti, a amiga na banheira de hidromassagem, Beto de sunga...Beto de snorkel...Beto de jet ski com Su na garupa...Beto só  de bermuda no passeio de barco... Como alguém que passa lua-de-mel naquele paraíso  pensa em se separar um mês  depois?

- Posso ao menos perguntar porquê?
- Pode.
- Então? Por que? - Susana fez um gesto com as mãos e uma careta. - Quer ser mais específica  por favor?
- É pequeno. Pequeno, não, minúsculo.
- O que, mulher? - Claudia não conseguia imaginar o que a poderia incomodar em um homem bem de vida, bonito, alto, educado, culto...
- O pirilau ôxe. O pau, o tico, whatever...
- Mas... veja bem amiga, os homens não são todos iguais e tamanho não é documento.
- Experimenta oito centímetros  de documento e depois conversamos.
- Você disse oito? Tem certeza mesmo? Mediu? 
- Aham. Com o meu dedo e claro, depois medi o dedo.
- Oito centímetros duro?
- Caramba, já falei Cláudia! É complicado, já na primeira vez foi. Não há maneira de sentir aquilo. É como fazer sexo com o meu polegar.
- E o que você  vai dizer a ele? Que vai terminar porque tem um pau pequeno?
- Nossa, você  falando assim até me sinto a pior das quase ex-esposa... Não sei, não pensei ainda. Acho que o clássico, né: o problema sou eu, não você...
- Já tentou colocar atrás?
- Já, é a unica forma de eu não  me sentir o metrô  de Paris.
- E um vibrador na frente e ele atrás?
- Já imaginou eu dando esta desculpa por mais de dois anos? 
- E um amante?
- Cláudia, mulher, você tá é louca para salvar este casamento, parece padre, viu?
A verdade era que nem Claudia sabia como lidar com aquele quadro. Olhou para Susana fingindo que nunca havia imaginado como seria Beto nu, embora sempre tivesse procurado pelo volume na sunga branca. Mesmo com o visível desespero da amiga, não conseguia encaixar uma coisa que não fosse menor do que quinze centímetros. Era como se uma parte de seu mundo ruísse, mesmo que fosse um mundo que se restringia a vinte minutos enquanto se masturbava. Como ia pensar em Beto lhe lambendo os seios agora? E quando pusesse o dedo lá embaixo saberia exatamente como a amiga sentia-se na hora do sexo.
- Mas e o amor?
- Lembra da música da Rita Lee? Sexo é do bom, amor é do bem? Então, e lá o amor sobrevive a oito  centímetros?
- Por causa de...
- Nós já tentamos todas as posições anatomicamente possíveis, isto é, as em que o negocinho não fica saindo o tempo todo e quer saber? Os sexólogos mentem, não existe ponto g, só um grande e enorme vazio em mim...



Era  meia noite de domingo e Cláudia não tinha pregado o olho apesar de saber que no outro dia tudo começava outra vez. A tela do celular iluminou-se quando a mensagem de Susana chegou. Ela debruçou-se nos lençóis amarrotados enquanto lutava para não ceder à tentação. Lá de dentro da gaveta das meias, embrulhado em uma toalha de rosto, jazia Beto. Tudo aquilo que ela conhecia dele. E ainda por cima nem verdade era. Cláudia desceu da cama na ponta dos pés e agarrou-o por baixo das cobertas. Sentiu a vulva contrair-se com o brinquedo de quase vinte centímetros. Beto entrava e saía de dentro dela como o fazia com Susana. A diferença é que nenhuma delas estava satisfeita com o pedaço de Beto que lhe coubera...



Se eu aceitasse era capaz de doer menos

Uma das coisas que a vida tem tratado de me ensinar é o quanto sou tola em acreditar na sua imutabilidade. Chegou um ponto que disse: vida, não mexas mais! Está bom assim. Mas parece que nasci mesmo para andar em montanha russa, logo eu que detesto alturas e a sensação de que o estômago vai sumir cada vez que rodopio. 
Quando fui buscar o Fabian na escola, voltei olhando para o prédio da esquina. Olhei para a sacada do primeiro andar, é lá que eu moro. Ainda tenho casa...mas e amanhã? O que será será? Não disse nada, mas o que mais me mata foi ter ignorado as vezes que o marido contou que achava que aquilo não andava bem. Eu: o quê, deixa de ser pessimista! Eu, logo eu, a pessoa que vê o copo vazio e que pela primeira vez brincava de o ver meio cheio. O que mais me dói é ter esta inocência ainda cravada dentro de mim. Não nasci para morrer perto do mar, nasci para espirais e afundamentos em grande velocidade, nasci para aquela sensação de subida que fazemos com tanto esforço, acabar em um abismo em poucos segundos.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Os iates da marina

Quando caminhamos pela praia sempre dou um jeito de olhar para eles, bem lá no fundo, passando os barquinhos, as lanchas, devidamente enfileirados de bunda para nós. Às vezes olho de cima, quando estou em uma espécie de praça-deck que abriga um dos parquinhos da cidade. São como brinquedos de adulto só que de fibra ao invés de plástico, só que caros, extremamente caros para o bolso de 99% da população. 
Estes dias o marido viu que estavam vendendo uma vaga na marina pela pechincha de 230 mil euros, detalhe: vale apenas para dez anos. O preço de um apartamento para estacionar o barquinho por uma década. Mas obviamente, quem teve uns cinco milhões para desembolsar na compra, não está preocupado com esta mixaria. 
Eu sei que estamos em plena época do beijinho no ombro, do cidadão começar a falar e já tem dedo apontando que é inveja. Mas de verdade que não tenho inveja disto (ao menos), tanto que eu penso que mesmo me tornando uma milionária, jamais compraria um iate, na loucura, talvez alugasse um por um fim de semana. Eu acho é obsceno mesmo. Acho obsceno uma pessoa ter a quantidade de dinheiro para comprar um barco que fica parado há mais de três meses. E sim, eles ficam mesmo parados. 
Eu tinha uma professora de história que dizia: o suor do teu trabalho pode comprar uma casa, pode comprar um carro ou dois, pode até comprar duas casas (uma de praia), e te levar para viajar fora do país. Mas o suor do teu trabalho não compra um prédio, nem uma ilha, nem um iate (completo eu). Há muita gente que teve que ser explorada, que teve que ganhar baixos salários, muita sonegação teve que ser feita para que tu pudesses usufruir deste bem. E eu concordo. Acho engraçado virem com aquele papo de comunista, esquerdista, sei lá mais o quê, principalmente vindo de quem é pobre. Então a pessoa acha que se trabalhar muito pode ganhar dinheiro para comprar um iate? Conta esta pro papeleiro que carrega sua carroça doze horas por dia para vender papel a dez centavos o quilo. Ou pro professor de escola pública, ou para a empregada doméstica, ou para o frentista (é aquela pessoa que põe o combustível  para os clientes do posto)*... e a lista segue. Já falei sobre isto aqui mas volto a dizer, a meritocracia me dá asco. Continuando, vendo por outro lado, quer dizer que se aquele sujeito é rico, é por que de fato mereceu? Eike Batista que o diga. As portas se abriram só porque viram que ele era o espírito empreendedor materializado na Terra? Ou será que foi porque o cara já nasceu um tiquinho rico, molhou a mão do governo, pagou mal seus funcionários, teve protecionismo quando os negócios não andavam muito bem?  
Talvez quem possa de fato dizer que comprou um iate com o seu suor, seja algum jogador de futebol. Embora possamos divagar a origem  daquela grana (já que futebolisticamente falando, alguns salários e contratos milionários escondem muita lavagem de dinheiro), talvez o único exemplo legítimo de meritocracia seja o do jogador de futebol. Um grande craque pode vir de qualquer lugar, apesar de vir principalmente das classes mais baixas. Ele pode ter um dom, mas com certeza para que se destaque e possa garantir o seu primeiro milhão, vai ter que dar muito duro e treinar para isto. Se ele conseguir que alguém o agencie, se ele tiver condições de ter um bom treinador, se ele tiver tempo para jogar quatro horas por dia ou mais, se ele tiver tratamento adequado quando surgirem lesões, se ele não arrumar confusão quando o deixarem no banco de reservas, se ele conseguir ser decisivo quando o seu time mais necessitar, então sim, ele mereceu se dar bem. Pena mesmo é que não podemos transpor este sucesso para as restantes profissões, pois eu desconheço um biólogo por exemplo, que possa comprar um jatinho com o seu salário. Seria muito fácil, mas nada lógico ignorarmos todas as estruturas sociais e econômicas que levam a que alguns consigam estacionar um iate sem usá-lo e outros batalhem para pôr comida na mesa. Mas o pior de tudo, é ver que há gente que ache isto justo. Eu não, acho obsceno. Mesmo que o iate preto com cinza que vi hoje, tenha escrito na bunda "Leomar" e que seja de algum jogador brasileiro.

*explicação necessária, pois não existe esta profissão  na maior parte da Europa.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Pior que um dia das mães, são três



O que se vê a cada quinze minutos nas propagandas na tv, nos anúncios do YouTube (até tu Brutus?!), na linha de tempo do facebook em meio à muita melosidade e fotos de mães felizes, faz com que seja impossível esquecer desta data (embora eu me esforce). Domingo passado foi dia das mães em Portugal, neste domingo é no Brasil e no fim do mês aqui na França. A coisa só não é mais maçante porque este pessoal ainda não fez como as testemunhas de Jeová, mas também, imagina lá em pleno domingo antes da oito: "você tem uns minutinhos para ouvir uma palavra sobre a maternidade"? Elas deveriam falar a verdade, nunca é só uma palavra. Para o comércio, é lucro, mesmo que seja um lucro disfarçado entre comerciais a puxar a lágrima do olho. Para as mães, é pessoal. Como se através daquela simples charge, foto de família ou frase de inspiração, quisessem catequizar o mundo, mostrar para as pobres coitadas que  não são mães, que a vida delas não vale nada, que tudo que elas conhecem por felicidade não é A felicidade. Que o amor, não é O amor e que apesar delas dizerem que estão bem assim, a sua existência não tem qualquer sentido se não passar para o lado "rosa" da força. O que significa deixar de lado qualquer lógica que podiam possuir, tipo adorar sofrer. É, o sofrimento é uma coisa boa, no pain no gain. Vamos lá malhar a falta de noção, já que não é com bumbum na nuca nem barriga negativa que se faz a melhor mãe do mundo. E para quem acha que exagero, é porque nunca leram comentários de revista de pediatria, nem nunca escutaram as conversas que pululam no parquinho só para dar exemplos mais óbvios. É por isto que ainda me surpreendo como esta gente fanática não começou a espalhar a (sua) palavra porta a porta. O problema é que mesmo depois de passarmos para o lado delas, há um código de conduta tão rígido que por mais que façamos, nunca é o bastante para ganharmos o cracházinho de mãe propaganda do Zaffari. 
Estes dias vi um vídeo em que o locutor perguntava para algumas crianças o que elas queriam ser quando crescer. As respostas: bailarina, motorista de caminhão, médico... Depois de closes e música de fundo dedilhada num piano, ele volta sua atenção para as mães e pergunta: e você, o que vai ser quando o seu filho crescer? A câmera desfoca e treme, as mulheres se sentem paralisadas com uma pergunta que talvez seja a primeira vez que lhes fizeram. Umas choraram, na boa que era quase uma obrigação chorar. Devem tê-las escolhido assim: olha, temos aí um comercial, mas vai ter que ter choro. Então o silêncio se prolongou e nenhuma conseguiu responder. E eu fiquei tipo, como assim o que eu vou ser, como se não houvesse vida para além dos filhos criados? No fundo, o vídeo  aborda sem querer, um dos dogmas desta maternidade-religião: o apagamento da mulher como um ser plural. Basicamente em nossa cultura ocidental, podemos dividir a mulher em antes e depois de ser mãe. Lembrando que as que escolhem não sê-lo são para sempre taxadas de egoístas e outros mimos. Ainda em pleno século 21 não é nos dado uma verdadeira escolha, é mais tipo uma maternidade compulsória, em que esta  é o ponto alto senão o único da existência feminina. Não há qualquer viagem, mestrado, doutorado, casamento, realização profissional que batam ao Nirvana que é ser mãe. O que me deixa abismada, é que o comércio lucra com isto, mas e elas ganham o quê azucrinando e diminuindo a vida das outras? Imaginava eu que toda religião pregasse amor e tolerância (por mais que fosse na teoria)...

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Disseram que ia chover...

Deitada na praia com um punhado de areia morna em cada mão, ouvia o Fabian e sua nova amiga a brincarem de encher o buraco que cavaram. Ele ia e voltava com o balde balançando pesado entre os dedos. Enquanto isto, dezenas de idiomas se misturavam à minha volta e eu como em um jogo silencioso, tentava adivinhar de onde eram os meus companheiros de praia. O vento empurrava languidamente as velas de um laranja berrante, o catamarã gigante que está quase sempre ancorado, saiu finalmente da marina. Idosos comiam sorvete sentados de frente para o mar, dois casais de motoqueiros deixaram seus capacetes para tirar fotos nas pedras. Uma senhora de mais de oitenta anos fazia topless, adolescentes jogavam bola e um cachorro latia ao longe. Estava mais um ordinário dia de sol, com as gaivotas planando sobre meus óculos. Ainda bem que se enganaram.


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