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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A Nega


Nega traz o café. Nega engoma a camisa do Dr. Faustino. Nega faz cozido com leitão que a minha mãe vem almoçar. A nega era tantas vezes requisitada que às vezes chegava a duvidar que tinha nome. Lembrava-se de ter chegado ali por ser a maneira mais fácil da mãe se livrar da filha mais velha. E tendo mais meia dúzia para alimentar, era o melhor que poderia fazer: teto e comida em troca de trabalho. A mãe só esqueceu de dizer que era teto e comida em troca de sua vida. Com treze anos deixou de ser Teresa para ser a Nega dos Fagundes. Na verdade na altura era a Neguinha, depois com o tempo, foi crescendo e engordando, e o apelido evoluiu conforme os cabelos crespos soltos se encolhiam por baixo de um lenço.
A Nega serviu para tudo, de cozinheira, empregada e babá. Se pudesse até de ama de leite a fariam. Serviu para acalentar o Dr. Faustino tantas e tantas noites, serviu também para anos mais tarde o Carlinhos perder a virgindade. Tivera tempos atrás um filho no bucho. Mas a patroa que não era boba e sabia das aventuras do marido, depressa levou-lhe em uma batuqueira que lhe deu um chá. Até hoje guardava uma dor imaginária no ventre como se aquela situação se repetisse vezes sem conta. Seu filho de sangue e suor lhe escorreu pelas pernas e Teresa ainda acha que foi melhor assim. Que vida teria um mulatinho bastardo naquela casa? Isto se a deixassem ficar lá.

Nega esfregava a camisa do dono da casa com sabão de coco. As mãos pretas torciam, os nós dos dedos se batiam e ela voltava a esconder as mãos na espuma branca. Enxaguava, pendurava e voltava a torcer outra camisa branca. Tinha de deixar os punhos e gola limpos, caso contrário faziam-na lavar novamente. Enquanto isto cantava, suspirava e lembrava do tempo em que ainda era livre, devia ter uns quatro ou cinco anos. Sentava na grama com o vestido sujo de terra e ficava a observar as formigas passarem sobre suas pernas finas. Faziam cócegas. Carregavam folhas enormes sempre em frente, sem perder tempo, sem olhar para os lados. Às vezes segurava uma das folhas só para as ver esperneando como se ainda caminhassem sem se darem conta de que haviam lhes tirado o chão. Depois as deixava ir e elas continuavam como se nada as tivesse interrompido. Devia ser muito chato ter a vida de formiga. Só trabalhar e trabalhar e não ter tempo para viver. Depois de muito chamar, a patroa lhe tinha ido com o robe e cabelos em rolos para a área de serviço. Nega! O que é senhora? – disse em um pulo. To chamando há horas, vem já me apertar o vestido. Seguindo ela pelo corredor ainda lhe pergunta o que estava pensando da vida. A Nega emudece e depois diz com um sorriso áspero que a outra não viu. E eu lá tenho vida pra pensar nela?

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Aula de samba

Anabela conferiu pela segunda vez se levava os tênis de ginástica na bolsa esportiva. Sim, levava. E também meias e top. Amarrou o cabelo em um coque e se despediu do marido dizendo que ia na tão aguardada aula de samba. O marido não perguntou que horas voltava, emendou ela em pensamento, que apenas por distração, não porque já tivesse deixado seu jantar no forno. Fechou a porta e nenhum sinal do olhar do marido, que permanecia embaciado no jogo da televisão. 
Nuno não era propriamente um gentleman, não era daqueles que abriam a porta nem dos que mandavam sms apaixonados. Mas era ainda sim um bom homem, correto, trabalhador e sincero. Aquele homem não guardava nada na garganta. No entanto, vinha notando que o desejo entre eles não era mais o mesmo. As trocas de carícias, as preliminares tinham se tornado tão ralas e...rápidas...e às vezes eram suprimidas para um caminho mais rápido entre suas pernas. Pudera que já lá iam em sete anos de casamento, muitas de suas amigas achavam normal, inclusive algumas delas arrumaram amantes, assim como os seus esposos. Anabela se arrepiava a cada vez que pensava se Nuno a estaria traindo. Será que estava? As amigas diziam que era bem provável porque homem nenhum aguenta mulher de coxas mornas. E foi aí que Salete entrara. A baiana foi indicada por uma colega de academia, dizia-se à boca pequena que a mulher ensinava como seduzir com o gingado de sua terra, ora claro que com samba.
Quando finalmente chegou na sala de um prédio simples e popular, exalava nervosismo. Salete chegou se apresentando muito sorridente e a convidou para se juntar as outras quatro alunas em outra peça de sua pequena academia de dança. Anabela foi guiada pelas nádegas bem desenhadas na calça de suplex da mulata. Tinha um sorriso muito aberto e genuíno, uma voz quente que envolvia e inspirava-lhe pela primeira vez a segurança de sua decisão. 
Cumprimentou as outras mulheres, deviam andar todas nos trinta, ao menos era o que parecia. A sala era pequena, mas os dois espelhos que ocupavam toda a parede deixavam-na com a sensação de que havia muito espaço. A professora mandou que sentassem em bolas de yoga. Anabela escolheu a vermelha. Sempre sorrindo, pediu-lhes que deixassem a  vergonha para o lado de fora da porta e dirigiu-se para o botão de play.




A peça inundou-se de uma voz masculina e Salete começou a requebrar os quadris. Tão graciosamente se moviam ao ritmo da música, enquanto falava:
- Aqui vocês vão aprender a sambar, mas não é sambar no chão. É sambar lá na hora do bem bom. Agora quero que mentalizem que estão com os seus amados... não não precisam rir...faz assim, estão sozinhas, pronto. Quero que vocês mexam conforme a música, só a cinturinha filha. - ia passando pelas alunas e pousando suavemente as mãos sobre os quadris, educando-os ao som e às paradas da melodia.
Anabela tinha vergonha, ainda mais se imaginasse Nuno por baixo dela, até esta era a posição preferida do marido, o que a deixava com uma pontada de timidez por lá estar. Mas não se daria por vencida, tinha decidido que ia reascender a chama entre os dois. Tinha se concentrado tanto no rebolado que quando deu por si havia caído da bola. Salete veio em seu socorro e colocou-a novamente na posição gangam style. Ficaram quarenta minutos a remexerem e suarem os quadris. Por fim a professora sentou-se em uma bola e começou a lhes mostrar o movimento que fazia o abdome. Raios parta, a mulher é mesmo boa, pensava. Não que fosse muito bonita, mas era sensual, tinha o típico corpo da brasileira, os seios pequenos e rijos, a cintura fina e as coxas grossas. Salete era do bem, não estava ali para roubar nenhum marido, mas sim para ajudá-las a (re)conquistá-los. 
A cada aula era uma posição diferente, uma música mais ou menos agitada, conforme ditavam os movimentos. Além da aula ainda havia abdominais, exercícios para fortalecer a pélvis, os glúteos e até aquela posição horrorosa que detestava fazer no ginásio. Tinha de deitar e levantar o quadril e abaixá-lo, sempre contraindo as nádegas. Salete dizia que era fundamental que tivessem preparo físico se quisessem algo diferente do feijão com arroz. - Ora estão aqui para fazer papaí e mamãe e mamãe e papai? Bora mexer estas ancas meninas!
E assim passou um, dois e três meses de aulas. Anabela finalmente sentia-se pronta para revelar ao marido tudo que aprendera com a baiana. Espiou através da cortina e viu que ele se aproximava do edifício. Correu com os saltos para mais uma olhadinha no espelho. A última. Tinha um corpete cor de vinho, entrelaçado com fita de cetim e uma calcinha de renda também em vinho. Sabia que o marido adorava aquela cor. Ou seria mais o vinho em si? Apertou os lábios rosados e conferiu o lápis preto nos olhos azuis. Não lembrava-se da última vez que se arranjara para o marido, talvez no primeiro ano de casada, talvez...
O barulho da chave a girar. Seu coração palpitava. O marido abriu a porta e deparou-se com a mulher em um salto agulha semi nua no hall de entrada. Mais que ligeiro mandou-a para o lado com medo que algum vizinho a visse naqueles trajes. Ela abraçou-o e foram para a cama. Fez-lhe tudo, qual uma aluna exemplar em seu último exame do ano. Ah sambou, sambou muito. Mas ele não desconfiava, não havia música, não havia pandeiro nem nada. Apenas Salete e suas mãos invisíveis a conduzí-los ao orgasmo. 
Caídos e abraçados, ela lhe desenhava espirais no peito cabeludo. Ele parou alguns minutos de olhos fechados, depois colocou novamente o relógio e levantou. Era a final da Taça Uefa, ou sei lá o que. Para o marido qualquer jogo adquiria status de final de alguma coisa. Anabela suspirou. Primeiramente desiludida, depois com raiva. Ele gritava da sala para que aquecesse o jantar. Ela levantou-se e colocou a roupa de costume, limpou a cara e decidiu: arrumaria um amante. Mas não um amante qualquer. O Gonçalo ia servir, era afinal de contas o melhor amigo de Nuno. E pensou contemplativa, de que talvez esta fosse a única forma de ficar mais próxima do marido.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Palmadinha pedagógica

Mário chegava em casa pontualmente às seis da tarde. Pegava quase sempre a Avenida Brasil lotada, muitas buzinas, senhoras e motoqueiros a costurarem entre os carros. Quando pisava no tapete de entrada do prédio de treze andares (porque será que terminava em um número ímpar?), limpava metodicamente os dois  pés e enquanto o fazia, ia tirando a pequena chave para abrir a caixa de correspondência. Nada? Nada hoje, ainda bem. Estas eram as duas frases que trocava com o porteiro, um simpático velhinho que trabalhava ali desde sempre. Pisava no soalho de pedra com mosaicos e apertava no botão para o elevador. O prédio era antigo, ainda possuía aqueles de porta de madeira com uma janelinha que hipnotizavam quem estivesse dentro. Concreto-porta-concreto-porta passavam ritmicamente à frente de seus óculos. Chegava no andar e antes da porta fechar, fazia uma rápida corrida até o interruptor. Caramba, o prédio podia ser dos anos 60, mas bem que a tecnologia das luzes de presença poderiam ser implantadas. Falaria disto na próxima reunião de condomínio. Mas sabia que no fundo iria estar tão aborrecido para que terminasse que manteria o silêncio até o final.
Mário chegava na porta daquele que tinha sido seu primeiro e único pouso desde que casara. Teresa fazia o jantar como todas as tardes. Abria a porta e saudava-lhe cordialmente, mas ela não respondia. Ouvia sua voz em meio ao vapor de feijão na panela de pressão, ela dialogava com o apito da mesma talvez? E assim começava o seu inferno. Ele esquivava-se, Teresa provocava. Cada vez mais e mais. E mais alto. Tantas eram as reclamações, que por certo as buscava desde aquele olhar que dera para sua melhor amiga quando ainda não namoravam, até a sua inaptidão biológica para lhe dar filhos. Se perguntassem para qualquer pessoa sobre o Mário, todos diriam ser um homem de bem. Discreto, educado, bom coração. Gente fina, diria o Carlão da oficina ao lado. Sua estatura mediana, seus braços delicados, a calvície precoce e os óculos de grau em moldura antiquada completavam a imagem de pessoa mais inofensiva da face da Terra. Além de tudo Mário possuia uma coisa rara, um olhar sereno e uma voz calma de palestrante budista. Ninguém sabe porque ele se apaixonou por tal figura. Teresa era o seu oposto: mulher histérica de profissão, cabelo cor de fogo, seios que pulavam pelo decote de um vestido que ainda lhe marcava os quadris e a bunda empinada. Teresa era dona de uma bela pele clara e de sobrancelhas expressivas, mulher de faca na bota e batom vermelho nos lábios. Ora, ainda não sabiam o que ela vira nele, porque cobrava-o todos os dias atitude. Atitude!! - Gritava Teresa para os vizinhos do quarto e do sexto escutarem. Mário se encolhia sob o jornal, fingia que não era com ele mesmo quando ela passava provocadora o aspirador em cima dos seus sapatos. Ele aguentava tudo. Diziam que o que ela lhe fazia era bullying. Agora tem este nome não é? Mário aguentava camisas queimadas, meias trocadas, cuecas manchadas de seus vestidos rosa. Aguentava os 40 cm de cama que ela lhe deixava, a comida que ela fazia mal de propósito, até as suas giletes sem fio que ela usava para depilar-se. Mas nada disto satisfazia Teresa, mulher de crítica e voz insaciável, ele mesmo já sabia que tinha virado motivo de piada na rua. 
 Levantou-se, dobrou o jornal e foi para a mesa. Ela comia em silêncio, tentando ignorá-lo e fazendo força para não cuspir o feijão queimado que havia lhe posto à frente. Ele serviu-se, feijão, arroz e asa de frango. Cortava o couro fino do animal cuidadosamente, tão meticuloso que uma hora a mulher não aguentou. Levantou-se de sopetão e nos seus finos peep toes jogou o garfo e a faca ao chão com força. Mário estremeceu, vivia em constante angústia por causa daquela criatura. Porra Mário, não vê que isto está uma porcaria?! - Ela esbraveja entre palavras salivadas de feijão - Toma uma atitude!! 
Mário olhou-a com os olhos marejados, tinha a impressão que os lábios balbuciaram algo sem que o cérebro tomasse conhecimento. Limpou os dedos de gordura de galinha. Chegou perto da mulher que arfava o peito, em um sutiã de renda, ainda mirou uma vez os olhos em chama de Teresa e a esbofeteou. E surpresa ela sequer revidou, ficou em estado de choque, escandalizada com a audácia do marido. Mário tinha o corpo todo em formigamento e as mãos habitualmente geladas, inquietas. Abriu o cinto e tirou-o em um só gesto, pôs a mulher de costas para ele, apoiada à mesa e lhe deu umas boas cintadas naquela bunda. Ela gemia. Não soube se de prazer ou dor ou isto tudo. O certo é que nunca mais lhe dissera nada. A comida voltou a ser tragável, suas meias direitas nas gavetas, suas cuecas foram substituídas. Mas de vez em quando Teresa ameaçava soltar a fera dentro de si e invariavelmente Mário soltava o cinto e ela gemia. Gemia na mesa e na cama ficava quieta e nunca, mas nunca mais lhe cobrara qualquer tipo de atitude.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O clube de swing

Já estava marcada há um mês a primeira visita em um club de swing, mas só agora pensava na loucura que fora ceder ao desejo do marido. Divagou hipnotizada enquanto olhava para o letreiro em neon: Liberté. No chão, um relvado macio pipocado de luzes escondidas entre as folhagens. Uma pequena estrada de pedras serpenteava rumo a uma porta de arco em madeira de lei. Seria a estrada da perdição? Estava tão absorta que mal deu pela mão do marido a lhe puxar delicadamente em direção à primeira pedra.  A rua era escura, os carros ficavam estacionados em um terreno ao lado, guardados por três seguranças e dois cachorros tão fortes e mal encarados que ela evitou fixar o olhar. Via a casa sofisticada cercada de muros dos dois lados, pintados de uma cor escura não sabia se roxo ou preto. Já a frente era aparentemente desprotegida não fossem os avisos de alarme e câmeras por todos os lados. Era uma casa grande de dois andares, cujas janelas se encontravam misteriosamente fechadas e pelas frestas deixavam escapar algum perfume de mulher e o resquício de uma música doce, sensual. Sentiu que um de seus pés falseou ao afundar o salto na grama, mas o marido lhe ofereceu o braço largo e musculoso para que não caísse. Ele também estava nervoso ou seria  melhor dizer ansioso? Não soube  a resposta e mordeu o lábio com tanta força que sentiu o gosto do batom entre os dentes. Ao chegar na porta o marido estacou. Ela ficou logo atrás a observar a argola metálica na boca de um leão feroz. O marido abaixou-se suavemente em direção a um interfone. Disse uma frase em francês e deu-se um estalo. A porta se abriu. Instintivamente fechou os olhos como se algo muito ruim pudesse lhe saltar para cima. Quando voltou a si estava em uma sala mal iluminada a não ser por duas luminárias em forma da silhueta de um homem e de uma mulher. O marido lhe puxava e pôde ver mais adiante outros pequenos pontos de luz, um grande sofá provavelmente feito sob encomenda, que abarcava todo um lado da peça. Alguns casais conversavam amigavelmente e ao demorar-se mais, percebeu que  estavam todos em trajes interiores. No lado direito, dois homens em cuecas escuras serviam os copos de cristal em um bar recheado dos vinhos mais caros, assim como uísques e vodkas fluorescentes. Não se sabe de onde surgiu uma mulher muito atraente em espartilho e cinta liga, ela dirigiu-se para o marido e os dois a conduziram para uma sala mais parecida com um closet. Ele começou a se despir ajudado pela mulher, primeiro a camisa e depois o cinto, as calças. Sentiu uma pontada de raiva, não queria que ela lhe encostasse um dedo, mas já era tarde. Estava arrependida, queria que o mundo parasse para que pudesse descer. Porém de má vontade foi desamarrando a gabardine que deixou caída em um cabide, enquanto ajeitava os seios em um sutiã bordado com swarovski que ele havia lhe dado justamente para a ocasião. Nunca sentira-se bem de fio dental, mas lá estava ela, em uma calcinha branca de laços em cetim. 
Quando retornaram a música havia mudado, um globo de espelhos girava traçando pequenas estrelas pululantes no chão e nos corpos semi nus. De repente tinha-se cravejada de bolinhas e a sua lingerie adquirira um tom violáceo, quase neon, destacando-a do resto do grupo de mulheres. Sentia que haviam dezenas de pares de olhos em seu corpo curvilíneo, queria cobrir-se, e já que não era possível, ao menos sentar. O marido deixou-a no sofá para pedir uma taça no bar, ela perdeu-o de vista e ficou tonta ao tentar em vão distinguir qual daquelas nádegas masculinas seriam as dele. 
Quase sem notar sentiu um calor nas coxas. Viu homens e mulheres se beijando ao seu lado, mãos começaram a explorar o seu corpo. Línguas desbravaram o seu pescoço. Os seus cabelos estavam rendidos a quem gentilmente os afastasse. E o calor foi aumentando, e a música e todo resto cada vez parecia adquirir menos importância. A certa altura deixaram de existir, agora tudo centrava-se nela e no seu prazer. Subiu as escadas carregada e acabou por pousar em uma cama macia de lençóis perfumados. Havia uma mulher que lhe acariciava e um homem que lhe colocava em posição de fêmea. Ela gemia e já não se lembrava do marido e do que quer que ele estivesse fazendo. Sentiu um estremecer e seus seios rijos acompanhavam o ritmo do membro que lhe prenchia até o âmago de seus pudores, os expulsando, desbravando, sustendo sua respiração. O homem dava-lhe tapas leves para que ela continuasse a mexer. Sua perceção foi ficando cada vez menor e mais concentrada, foi ficando cada vez menor e menor e menor...até que explodiu. Expandiu-se em graça, sentira cada célula do corpo vibrar e renascer. Sentira-se viva, leve. Depois percebeu a convulsão de seu parceiro e finalmente caiu entre as dobras do lençol. Ficou alguns minutos sem abrir os olhos, apenas resgatando a emoção avassaladora do primeiro orgasmo com um estranho. Era incrível pensar que resistira tanto tempo aquele convite, o qual tantas vezes estivera a ponto de cancelar. E no entanto lá estava ela entregue agora ao seu próprio corpo que jazia em dor, aquela dor que invade o vazio que o prazer deixa-nos depois. Quando descerrou os olhos viu ele. Não o homem que havia acabado de lhe foder, mas o marido. Estivera o tempo todo a se masturbar na poltrona ao lado da cama. Recolheu-se em sua vergonha, mas ele veio ao seu encontro e beijou-a toda, nariz, testa e boca. Foi deitando-a novamente e cobrindo-a de beijos até a dor desaparecer e dar início novamente ao prazer. Da primeira vez fizera sexo. Do bom. Do bruto. Agora fazia amor e não sabia qual deles a satisfazia mais. O sexo fê-la perder-se, mas o amor lhe trouxe de volta. E agora sabia que não conseguiria existir sem os dois. E a culpa toda era do marido. Ela bem lhe disse que podia viver sem Liberté.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Dona Inês

D. Inês mexia nervosamente os pezinhos enfiados em chinelo carmim. Colocava e voltava a tirá-los, colocava e voltava a tirá-los. Ela sabia que esta mania incomodava o marido. Podia ouvir a sua respiração pesarosa por detrás do jornal e dos óculos de moldura severa, tal qual seu dono. Ela sabia que estava a chegar a hora, este era sempre pontual. Com que roupa viria? O que traria consigo desta vez? Um ramo de rosas ou uma caixa de bombom? Ou... riu-se baixinho a imaginar o que ia dentro da sacola de uma sex shop. De repente os ponteiros do relógio resolveram brincar, não andavam. Simplesmente balançavam para lá e para cá, no movimento nervoso dos seus chinelos. Suspirou e olhou para a tv muda, há tempos não contentava-se com nenhuma novela e os programas de auditório pareciam ainda mais histéricos do que quando tinha paciência para assistí-los, já ia um par de anos... Achava que seu passatempo agora era bem mais natural para uma velha senhora de robe de bolinhas brancas e chinelos carmim. De repente a porta do elevador gemeu, foi reclamando enquanto vagarosamente fechava com um estrondo do ferro a bater no ferro. Era ele possivelmente. Podia sentir o perfume almiscarado cobrindo o corpo que lhe parecia esbelto, embora ficasse distorcido pelas suas lentes. Levantou cuidadosa em direção à porta. Como boa alcoviteira, fechou no caminho a claridade da cozinha para que não vissem seus pés diminutos pelo friso da porta. Os passos apertavam no corredor. Toc toc toc. Graves, era um sapato bom, sola de couro. Podia agora ver a nuca do homem, o cabelo bem cortado e as costas largas em um paletó negro. Deu dois toques de leve com o dedo: era o sinal. Silêncio. O homem olhava para a porta do elevador, talvez com medo de que alguma coisa ou alguém lhe pudesse denunciar. As paredes tem ouvidos e as portas tem olhos, pensou D. Inês, mas ainda são mudas meu filho. A porta permanecia fechada, às vezes a vizinha gostava de se fazer de difícil. Ele pigarreou, olhou para o relógio, mas ela tem certeza de que não viu as horas, apenas os milésimos de segundos que passou estancado à porta verde de trinco dourado. Ajeitou a alça da sacola. Hummm era escura, não dava para ver o que era. D. Inês subiu nos dedos o mais que pôde. Maldito do Zé que sempre esquecia de que não fora favorecida pela natureza. Não conseguiu saber, a vizinha abriu a porta e engoliu o homem na escuridão do apartamento. Ela saiu e voltou a sentar no sofá. Os pés balançavam nos chinelos, o olhar perdido entre as velhas da televisão e a apresentadora que gritava e ria escandalosamente sem emitir nenhum som. O único barulho era o jornal do marido e da sua respiração. Uma hora e meia depois o homem saía, os sapatos a ecoar no corredor vazio e iluminado pelas luzes de emergência. Vinte minutos depois, era o das botas de borracha. Às vezes vinha com macacão e uma maleta de metal, às vezes com um frango assado que comprava do outro lado da rua. Mas vinha sempre de botas. Oh céus como rangiam. Rangiam as botas no corredor e rangia a cama e rangia a mulher. Depois um senhor muito magro e baixo. Tinha bigode e uma roupa de corte ultrapassado pela moda. Depois o das tatuagens e calças largas. Tinha um crucifixo tatuado na nuca, este fazia a vizinha rezar muito. Também havia o da moto, professor de jiu jitsu, o representante de remédios. Não eram todos em um dia só, revezavam-se. Saberiam uns dos outros? Especulava para o marido, que só lhe respondia para que parasse de querer saber da vida sexual da vizinha. Mas muitas vezes não era dela que queria saber, era do corno. O último homem a chegar à casa tinha passos de sapato barato e solas gastas. Abria a porta com dificuldade, atrapalhado com uma criança pela mão e outra menor no colo. Sua careca suava enquanto fazia aquele que deveria ser o seu único exercício do dia. D. Inês tinha vontade de abrir a porta para cumprimentá-lo, perguntar qualquer coisa sobre o tempo ou reclamar que a faxineira não havia limpado o hall do prédio. Mas não conseguia, por mais que quisesse não conseguia olhar para o homem de olhos azuis, com duas crianças penduradas e mochilas e chaves. Tinha medo dele ver que sabia. Tinha medo de ver que ele por sua vez também sabia. E o olhar de um corno é das coisas mais tristes que há... Talvez devesse reconsiderar a ideia da neta e inscrever-se em um programa de auditório. Ela tinha razão: deveria ser apenas uma velha como as outras.  

terça-feira, 2 de abril de 2013

Sacolé



Sua vida mudou quando viu a boca de Ana. Era uma moça bonita, bem feita de corpo, mas o que mais chamava sua atenção como um íman, era a boca. Conjunção de lábios roliços e rosados. A pele parecia de seda, mal ela lambia o lábio inferior, deixava um rastro de luxúria. Fazia de tudo para não encará-la. Era sua cunhada, a Ana, namorada de seu irmão mais novo, então com 24 anos.  Ele bem tentava, mas já dizia-se de que de boas intenções o inferno está cheio, e ele com certeza iria passar o resto da eternidade no calor da culpa. 
A Ana chegava e o suplício começava e, quando estavam à sós, era um descalabro. Suava. Escorriam gotas pela camisa, pelas orelhas. Ela não desconfiava. Mascava chiclete e fazia bolas enquanto folheava distraidamente uma revista de fofocas. Às vezes perguntava-lhe qualquer coisa e ele tinha de esforçar-se para recuperar o tom de voz e geralmente o que saía era algo mais parecido com um adolescente imberbe do que com um homem da sua idade, lá no meio dos trinta. Mexia nervosamente no smartphone à procura da ligação da mulher, alguma mensagem depressiva sobre não aturar mais os berros do bebê, ou um recado para passar na farmácia antes de ir para casa. O telefone tocou e não era o seu. A cunhada remexeu no bolso da calça e tirou de lá um objeto morno que gritava. Alô... Mascava. Os lábios róseos de morango cobertos de corante até a língua. Monosilábica. Ana só era assim no telefone. Desliga e lhe pousa o olhar enquanto devolve o aparelho para perto das nádegas. 
- É o seu irmão. Disse que ficou preso em uma apresentação na faculdade e pediu para você me dar uma carona. 
- Hum.
- Isto é um sim?
- Hum hum. Sim. Claro.
Ela levanta-se e deixa cair a revista. 
- Vamos?
Ele limpa o suor das têmporas e fecha a porta. Não sem antes checar mais uma vez por um sinal da mulher. Implorava, rezou a todos os santos para que houvesse uma luz, para que alguém lhe tirasse desta enrascada que se prolongava há dúzia de meses. A tela continuava muda. Assim como os santos. Resignado obedeceu um pouco daquela voz que lhe assumia lentamente o controle. Não olhe em hipótese nenhuma para ali. Use o espelho, use o trânsito, ligue o rádio. A cunhada estacou em uma janela.
- Peraí...
Ele viu impacientemente ela bater palmas e abrir a bolsa. Pergunto? Não pergunto? Debatia-se em uma timidez infantil. Passava a mão nos cabelos. Só queria chegar à casa são e fiel como sempre o fora. Olhar para a cara de olheiras da esposa e para seus lábios finos e contidos, atirar-se a eles comedidamente antes que o choro do bebê os separasse. Oh inferno esta Ana! Porq...
- Obrigada! Para você também. Tchau!
Olhou para o lado, mal podia acreditar. Pôs a mão nas ancas, suspirou quase assoviando. É isto né não, Deus, você que me foder! Você quer me ver fodido!
Ana abria a embalagem plástica e transparente devagar como quem apreciava aquele ritual. Ele ficou hipnotizado enquanto ela metia o cubo de gelo vermelho por entre os lábios apertados. Formava um botão de rosa ainda fechado. Não, era uma vulva. Vermelha. Escarlate. Que abria e fechava e chupava.
- Adoro sacolé!
Todo o percurso até o carro foi feito em silêncio da parte dele. O silêncio que era cortado pela sucção do líquido doce que deixava a sua boca levemente inchada e ainda mais rosada. Colocou o cinto, deu a partida sem olhar. Por sorte não vinha ninguém e ele lembrou-se do telefone na cavidade para este fim. Mudo. Sem rede? Não. Nenhum sinal da mulher.
Ana continuava, ele evitava olhar para os espelhos, não evitou foi uma saraivada de buzinas no trajeto de quinze minutos. A cada desvio, Ana segurava-se e perguntava se estava bem. Ele ria nervosamente, pedia desculpas para adiante cometer os mesmos erros. Piscas para o lado errado, sinal vermelho, ultrapassagem pela direita, se somassem os pontos ficaria um ano sem dirigir. Finalmente avistou a esquina do prédio do pai da cunhada. Ela  morava ali desde pequena, já havia lhe contado. Um edifício baixo, com algumas pastilhas em falta e sem elevador. Qual era o andar mesmo? O quarto. 
- Pode me deixar aqui. Obrigada.
Desviou-se com o resto do sacolé entre os dedos. Um beijo lhe calhou na metade dos lábios e ele sentiu o frescor de sua boca carnuda. E aquele beijo foi pior do que nada porque agora metade dele sabia o que era aquele colchão de carne que o irmão violava aparentando ser sem consentimento. Agora sabia e já havia sentido o gosto de suco de morango misturado à maciez de seus contornos arredondados como seus quadris. Era adúltero sem o querer, ou melhor , queria mas não planejava. A culpa sem o desfrute era pior do que o ato consumado.  Falhou. Sua língua invadiu, conquistando, evocando tudo que era ou devia ser dele. Ela a entregar-se em uma rendição de pouca luta, ao sexo que suas línguas selvagemente dançavam. Quando abriu os olhos, a cunhada já lhe acenava junto às grades do prédio, com um molho de chave a meter-se na bolsa. Realidade, sonho ou desejo? Nunca soube. Dizem que os olhos são as janelas da alma e ele nunca conseguiu olhar nos olhos da cunhada. E se são os olhos as janelas, os lábios são a porta que ela deixava entreaberta. E sentia que sua vida não seria mais a mesma desde que vira pela primeira vez a boca de Ana.

quinta-feira, 7 de março de 2013

O colecionador de mágoas

O corpo fala, filho. Tenhas certeza disto. Tu podes achar que não proferiste uma só palavra, mas ele trai-te desde o princípio, desde o primeiro choro até o último suspiro. Eu digo-te que fala e age conforme a petulância do teu coração. E como, perguntas-me. Lembra de algo que te incomoda, vês logo o teu peito a galopar, tens uma pontada no estômago, um tique no pé. Doem os dedos, estalamos como gostaríamos de fazer com alguns pescoços por aí. E não, nós fingimo-nos de surdos a cada vez que ele fala. Parece-nos que quer nos tirar o brio de civilidade e nos transformar em segundos em macacos selvagens de corpo nu. O corpo quer-se nu. Ele fala e nós não o escutamos. Teimamos e ele também teima por sua vez. Duas pessoas conversando são dois corpos falando ao mesmo tempo. Ganha quem souber ler o outro, quem parar de fingir e ouvir as mãos, os nós mal resolvidos. Ganha quem calar. Em suma. E é só. O corpo fala e trai-te. Quanto mais cedo perceberes, filho, mais saberás de ti e dos outros.
Sabe porque a arte é tão exagerada aos nossos olhos? É porque não tem pretensões para com a vida. A arte não imita a vida, não aquela que conhecemos. A arte imita o corpo. E daí que a notícia de uma morte causa um desmaio. Já viste lá alguém desmaiar quando outro morre? Eu não. E quando em desespero um sujeito se joga ao mar de roupa e tudo. E outro vomita quando uma situação lhe causa asco. Não, filho, ninguém o faz. Por acaso este teu velho pai aprendeu que há memórias que não se evocam, que há filmes que não devemos rever. E no entanto revemos. Sonhamos, sofremos, odiamos tudo outra vez. E a cada volta o corpo fala, aperta-nos com sofreguidão. Porque não o escutamos agora? O corpo não sabe do tempo, acha e vive como se fosse da primeira vez. Como se pudéssemos mudar naquele instante o que já é passado. O corpo não possui gavetas como eu para colecionar mágoas, pois se gavetas tivesse, estariam todas, filho, rasgadas ao chão até o último dos sentimentos.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A revelação

Precisamos conversar ele disse. Agarrou o copo das suas mãos e pousou sobre a mesa depois do jantar. Ele suspirou, balançou a cabeça como se isto fizessem as palavras saírem mais rápido e lhe disse mais seco do que previra:
- Eu te traí Helena. 
Houve silêncio. Ouve. Os olhos encaravam o chão, mas as mãos continuavam frias agarradas no seu braço. Mania tinha ele de lhe encostar quando falava, de tocar em seu cabelo a fazer espirais tal como uma amiga de infância fazia quando chorava. mas as mãos estavam inertes, agarradas. Ela tinha a boca seca. Pensou em servir mais vinho. Imaginou o líquido descer vermelho sem pudor sobre a transparência cristalina, resultado da doença obcessivo-compulsiva da empregada. Salpicos de vinho sobre o copo e no fundo jaze a sua morte. Ou a dele. Depende de quem olha. Mas não o fez, o vinho continuou repousando sobre a toalha de detalhes dourados, ainda tinha as iniciais da sua avó bordadas nos cantos. O que faria ela se ainda estivesse aqui? Perdoava? Perdoava. E ela?
O homem desta vez procurou os seus olhos e temia que não sairia daquela mesa sem uma resposta, nem que fosse um não. Ao invés do silêncio alguma coisa levantou-se ao seu favor e pediu-lhe o corpo para falar:
- Quero que me conte.
- Conte o que?
- Quero tudo, nomes, detalhes, datas. Quero saber como foi. Quero saber se valeu a pena.
Ele intimidou-se, visivelmente desconcertado:
- Mas de que adianta saber? É para ficares com mais raiva? 
Ela manteve-se firme. Sem enredo a história entre eles chegava ao fim. E ele sem avistar qualquer saída, acatou-lhe o pedido e começou a contar a primeira vez, enquanto tomava largos goles. Queria vodka ao invés de vinho. Vodka deixava tudo absolut não?
E a mulher bebia os detalhes, iria embriagar-se em hotéis fedorentos, em oportunidades buscadas entre o horário de almoço, entre viagens a negócio, entre corpos dos mais variadas formas. Loiras e baixas, cristãs e lolitas, estavam ali todas elas nuas, expostas a curiosidade da mulher traída. Ela nada dizia, nem seus olhos. Nenhuma réstia de aprovação ou desagrado. Talvez ela pudesse ser da guarda da rainha e nunca lhe dissera. No final, suava pelas têmporas e o peito. Sentia os cabelos grudados embaixo da camisa cinza. Ela esperou que se confirmasse mesmo o fim de toda sua luxúria e lhe disse sem pudores com a mão em seu sexo:
- Quero foder você agora.
Ele sequer acreditava no que ouvia/sentia. Aquela mulher depois de tantos anos ainda conseguia lhe surpreender, mas quando levantou-se já a lhe apalpar o traseiro, ouviu a sua voz, ainda sem se virar:
- Amor, chega. Está ótimo, esta já é a quinta vez que encenamos isto. Vai dar tudo certo no teste amanhã. Só queria saber quem escreveu isto, provavelmente alguém que nunca tenha sido traído.
- É...mas tu perdoavas?
Ela em um olhar rápido virou-se para o quarto sem lhe responder.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Domingo de chuva

Maria olhou para o filho. Olhou para os ombros e as mãos sujas a carregar alguns bocados de papelão. Ele nada dizia. Mas o silêncio, este gritava. Há tempos queria sentar-se e dizer a história sobre o seu pai. O menino nunca perguntou nada, mas achava que deveria saber. Pouca coisa além de um nome e de uma data. Já sequer lembrava do rosto, mas desconfiava de que lhe havia puxado os olhos. Escuros e profundos. O filho remexia no lixo deixado depois do natal pelas famílias de classe média, algum pedaço de carne, algum queijo fora da validade, pedaços de pão velho. Às vezes parava e olhava pelos carros a fecharem os vidros alguém a rir e divertir-se, crianças a brincar com o presente recebido no dia anterior. Aquilo era pior que a fome. Estar a observar o filho diante de uma realidade que não pôde lhe oferecer em nenhum momento. O sorriso dos outros nada tinham a ver com a falta do seu. Mesmo assim tinha raiva. Parou por instantes ao constatar que um dos vidros abria e de lá saia uma mão pequenina a soprar. O filho olhava consternado, mas sorriu palidamente. Chovia bolas de sabão. E eles viram-se rodeado delas, leves e frágeis a estourarem pelo ar e pela garoa daquela manhã. Em um movimento viu a mão escura do filho agarrar a bola, por aqueles segundos foi novamente criança. Mas o sinal abriu, os carros se foram e outros vieram. E ele seguiu  no seu silêncio, a abrir e fechar um saco plástico de cada vez.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O cafajeste italiano


A tia dizia que viver na Itália era a melhor coisa que lhe tinha acontecido. A tia casara com um italiano e não precisava neste exato momento estar a limpar as borras de café no balcão de um bar sujo de Palermo. E a única coisa que lhe enchia os pensamentos era a música dos titãs Go Back. A música incorporava-se em seus dedos e quando via estava a murmurar e sacudir a cabeça enquanto o pano ficava castanho e a  fórmica insistia em ficar apenas borrada ao invés de limpa. O sino que anunciava a chegada de um cliente tocou, ela virou-se ajeitando o avental. Tinha a franja sobre os olhos quando deu com o par de olhos mais azuis que o mar mediterrâneo, sentiu os pelos do braços a eriçarem. Nunca fora mulher destas coisas, de arrepiar, de acelerar o coração por qualquer um. Sinceramente nem lembrava-se se algum dia sentiu isto a não ser por aquele homem de metro e noventa e olhar insistente. Ele fechou a porta atrás de si, pois já estava habituado que a mola estava quebrada desde sempre, deixando o frio e a chuva fina longe dali. Queria dizer-lhe com ar emburrado que o estabelecimento fecharia dentro de minutos, mas conteve-se sem saber se o fazia pelo seu  italiano ser terrível ou se porque o homem sabia disto e mesmo assim perseverava com aquela mania. 
Às vezes ela permitia-se olhar por de trás de um manto de timidez quando lhe preparava o café e o pão  que usualmente pedia. Devia ter 35 a 40 anos a julgar pelas têmporas que tinham caracóis mais prateados que no resto. A barba devia ser estrategicamente aparada para manter-se sempre barba por fazer de dois dias, coisa que ela não apreciava em homem nenhum. Mas o pior disto era o sorriso e a aliança na mão esquerda. E sua solidão. Por ela seria capaz de não reconhecer-se e fraca, deixar-se levar por alguns minutos nos braços de alguém. E assim foi quando naquele dia ele fizera mais um convite para um passeio pela praça (que ela suspeitava que o fim seria no hotel mais próximo). 
Ele amparou cuidadosamente seu braço quando trancava a porta, pois que tremia de frio e nervosismo, embaixo do guarda chuva que ele pacientemente segurava. Era como a chapeuzinho sendo levada para a casa da vovozinha pelo lobo mau. Mas não era assim tão inocente, neste caso a chapeuzinho era tão culpada quanto o lobo. E assim eles saíram um pouco abraçados pela chuva fina e gelada, que molhava seus pés e a barra da calça justa. Ele ia lhe dizendo coisas no caminho, algumas ela entendia, outras não tinha mesmo vontade de esforçar-se para isto. Mas era algo como aproveitar o momento, carpe diem, estas coisas. Perguntava-se se este seria o lema de todos os traidores deste mundo a fim de justificarem o fogo desmedido por entre as calças.
Chegaram no quarto e enquanto ele servia um vinho que havia pedido no balcão, ela engolia-se na cadeira. Olhava para a janela e via-se refletida no vidro húmido. No entanto o vinho descia e uma onda de calor brotou em seu corpo já tão cansado de culpa. O homem lhe explicava que estava apenas preso às mãos, mas que o membro não tinha qualquer parte no compromisso que havia feito alguns anos atrás. Pôs-se a beijar-lhe a nuca e afagar-lhe os seios. Alguma coisa dentro dela sentia-se crescer e esquecer do mundo, deixando apenas atenção para o seu corpo jovem. 
Foram finalmente para a cama. Revezavam-se no poder que exerciam sobre o outro. Eram momentos de paz e gozo, de dor e presença. Riram. Exploraram. Deixaram que seus corpos se conhecessem. E dali conseguiram um empate, dois a dois. Entre mortos e feridos salvaram-se todos. E não sabe se foi pelo vinho ou pelo sexo, haviam fugido horas sem que percebesse. Agora nos lençóis brancos apenas ela, nua e crua de vergonha. O cafajeste devia estar dizendo habilmente mentiras em sua boca adocicada pelo seu perfume. Ela levantou-se ainda sem equilíbrio, os cabelos confusos em espirais, os pés tontos de encontro às roupas. Pelo menos ele havia pago o alojamento, ela até poderia passar a noite longe de seu quarto alugado em Corleone. Mas vestiu-se e deixou o lugar, pelo menos isto podia deixar. Já que ao cafajeste ninguém abandona.  E quando finalmente o céu a tinha sob custódia, maldisse a tia, a lua, os deuses todos, encolhida no casaco carmim. Tinha raiva desta sina feminina que procurava o amor em qualquer esquina, e que ao mesmo tempo desculpava os homens que partiam incólumes a sua vida. Dizia a si que nunca mais com aquele estrangeiro, mas sabia que a solidão voltava... e não só voltava como nunca a abandonou. 

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Domingo de chuva

Ela balançava os pés sobre a poça de água que se formara com a chuva do dia anterior. Vez por outra molhava a ponta dos sapatos mary jane e a cada vez que passava-os pela poça eles ficavam brilhantes para logo após arrastarem no barro que circundava a água turva. Ficou assim por longos minutos a observar as pombas caminhando com seus pescoços para frente e para trás. Estava triste. Antes. Mas agora não sabia o que sentia e se sentia. Mas sentia sim, um vazio. Tudo dentro dela parecia branco. Um oco. Um eco. Poderia ouvir-se a gritar por dentro se houvesse voz. Mas não havia. Então pensou que talvez sentisse saudade de si. Queria visitar-se e não sabia como. Havia muito tempo que não se via, que não se falava. Talvez já nem lembrasse mais o seu endereço. 
Mais pombas voavam e voltavam. Algumas eram corridas pelas maiores quando encontravam comida. A inveja, a cobiça, também existem na natureza, não é privilégio nosso. Nós apenas damos nomes. Complicamos. Escondemos, enquanto deveríamos aceitar que em algum momento seremos o vilão da história dos outros. 
 As pombas bicavam-se por miolos de pão. Algumas pessoas fazem o mesmo por dinheiro e atenção. E enquanto todo mundo fingia que isto tudo é pecado, ela concordou em perdoar sua ausência para ser feliz. Ela vestiu-se da cabeça aos pés, preenchendo-se do vazio. E enquanto todos teimavam em ser uns para os outros, ela foi embora pensando que não havia nada mais triste do que alguém abandonado por si mesmo. E agora não sentia-se triste. Não sentia saudade. Mas sentia. Sentia-se



segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Domingo de chuva



Ele suspirou e em um movimento brusco puxou as calças. Então olhou para as ancas da mulher enquanto ela rodopiava e rebolava para caber em um jeans justíssimo. Os cabelos grudados nas costas nuas lembravam rios negros descendo sobre a cintura fina de quem ainda não tivera filhos. Foi quando sua voz saiu rouca por entre o algodão da blusa.
- Acho que devia se separar. Não sei como você suporta tudo isto.
- Isto o que? - disse subitamente já lembrando do que perguntara.
- Isto...viver assim sem sexo. Quantos meses...oito?
Ele sacudiu a cabeça. - Sete meses. Eu sei, se está difícil para você nós podemos continuar só amigos, não há problema nenhum. 
Ela virou-se devagar enquanto penteava os cabelos com os dedos. E disse em um suspiro que não, que não suportava vê-lo naquela situação. E que eram amigos e aquilo era apenas mais uma demonstração de carinho que  podia haver entre eles, amigos há alguns anos. Ela olhou para o relógio no canto da cama e colocou a sandália de salto. Sentiu que os olhos dele estavam postos em seus dedos enquanto ela passava as cordas pelo tornozelo. De repente estava pronta e ele deu-se conta de que estava com o tronco nu e ainda sem sapatos. 
- Acha que ainda ama ela?
Ele era todo silencio. Um suspiro e vestiu a camisa, apertou os botões a cada respiração prolongada pela agonia de lhe responder. 
- Eu não sei. Acho que a certa altura nos acostumamos com o outro. E depois tem o menino. A fisioterapia... O ar escorregou pesado pelas narinas. E...bem, já estamos na hora. Deu uma sacudida nos cabelos grisalhos e abriu a porta. Pagou o motel como era de costume e largou-a na esquina da rua em que ela morava. Embaixo de uma árvore, discretamente trocaram um beijo no rosto. 
- O que você vai dizer a ela desta vez?
- Não sei...vou dizer que era domingo e que choveu.
Ela jogou os cabelos para trás e sorriu delicada.
- E quer saber, vou torcer para que chova novamente. 
- Quem sabe?
Ficou a ver a silhueta da jovem ficar pequena até desaparecer na esquina. Ficou olhando para o jeito que a cintura mexia-se e para o traseiro redondo que havia apertado no êxtase naquele quarto. E sorriu amargamente, porque ela sequer imaginava que ainda naquela noite faria amor com sua mulher, que seu casamento era feliz, aparentemente. Sequer imaginava porque era  nova demais para saber das mentiras que os homens contam. Mesmo para suas melhores amigas. E filosofou que quando descobrisse provavelmente não mais lhe falaria e então ficaria como aquelas mulheres amargas depois dos trinta. Deu a partida no carro e sorriu. Saberia aproveitar enquanto pudesse. E nos seus olhos fugiu uma gota. Não chorava, era apenas o seu reflexo no espelho retrovisor. E não é que ficava mais sensível nestes domingos de chuva? Ou pelo menos gostava de pensar que sim.
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