quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Ai que ousadia!



É complicado ser gorda em um país de magros. Sair de casa é, parafraseando Narcisa Tamborindeguy, uma ousadia. Para começar nas roupas: cheguei em um estado que fui obrigada a pegar emprestado os casacos do marido. O conjunto fashion se completa com umas calças de moletom e os tênis de sempre. Agarro-me à minha cara de paisagem e saio. Velhas e velhos esquálidos me olham com jeito de "onde saiu isto"? E eu tenho certeza de que estou virada em um pudim gigante, só me vem à cabeça Nicki Minaj cantando "I got a big fat ass". Sim, queridinha, mas tem o resto todo no lugar! Então pshhhhh.

E aqueles potinhos que levava para casa com o que sobrava da festa? Franceses, vocês não tiveram infância...















Não tenho culpa de que de onde eu vim, nas festas de aniversário, não se fazia o bolo contando a dedo o número de fatias com o número de convidados. Provavelmente minha mãe teria gostado disto, lhe pouparia das milhares de recomendações. 



Eu comendo qualquer coisa saudável.


Chegou a hora de correr atrás de todo o prejuízo, voltar a caber naquelas roupas escrupulosamente arrumadas no armário. E como quero fazer isto? Correndo de dia e comendo chocolate de noite, cruzes!! Ainda bem que na próxima semana o Fabian vai começar a almoçar na escola, o que me dá três dias inteiros, e duas manhãs só para mim (nesta escola não há aula nas quartas e sextas à tarde). 
Já fui olhar uma academia que fica a uns 5 minutos a pé, portanto, a parte de se mexer já está pensada. Meu problema é e sempre foi a alimentação: comer verduras, cortar doces, diminuir o sal... comer frutas... Mas reconheço que vou precisar mudar se quiser fazer as pazes comigo e deixar de parecer o boneco de Olinda desfilando na rua. 

Seria trágico se não fosse cômico ou vice versa

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Cinema da tarde

Vou buscar o Fabian na escola e ele vem o caminho todo a miar. A voz era um novelo enrolado a que ele esticava e voltava a puxar. Mas e o que te incomoda? Era a a camiseta que estava colando nas costas e que depois já em casa descobriu que não era nada disto. Enquanto eu fazia a mamadeira, ele desatou em um choro. Quando lhe perguntei porquê do drama ele dizia que "o choro incomoda eu". Ao que lhe respondi, então não chora, bolas. Berreiro ainda mais alto. "To chorando porque eu choro tantas vezes e tantas vezes que eu não queria chorar!" Buaááá!
É um sentimental este guri, ainda na escola antiga me contava que não gostava do Enzo porque ele o chamava de bebê. E ele não queria chorar e chorava. Não sei a quem puxou, eu é que não, já faz tanto tempo que nem lembro da última vez...

domingo, 25 de janeiro de 2015

O mau humor da fome

Tinha uma amiga de faculdade que me diagnosticou assim. Quando se aproximava das onze e meia, o professor não calava a boca, se avistava sempre os mesmos nerds a fazerem perguntas às quais conheciam as respostas, eu bufava. Botava uma nádega a cada vez na cadeira desconfortável de madeira. Ela me olhava de soslaio, quieta. Sabia que era a pior hora para falar comigo. Era o mau humor da fome tomando conta de mim. Depois daquela sombra ou do buraco negro que se espalhava no meu estômago comendo cada pedacinho de pensamentos bons que pudesse ter, a vida era escura, um breu. Quase podia ouvir os titãs cantando "você tem fome de quê, você tem sede de quê?". Na fila sem fim do R.U. (restaurante universitário) ouvia-me resmungar com o grupo de hippies atrás de nós, ou dos textos que tivemos de ler ou do cardápio que teria naquele dia. Mas ela sabia que tudo aquilo não era eu, era a fome falando, o buraco negro dentro de mim. Bastava que se enchesse com arroz grudado, feijão sem sal e carne cheia de nervos para voltar a ter a amiga tranquila de sempre.
Eu e meu estômago temos uma relação assim, bipolar: ora ele me faz a mais feliz das criaturas, ora ele me transforma na mais miserável . Detesto fazê-lo passar fome e é por isto que para mim dieta é das piores coisas que me podem fazer passar. Eu sei que dizem que não se passa fome, que é só comer de três em três horas, mas pouquinho, comidinha leve, sem sal nem açúcar. Nã! Comida em doses homeopáticas é um hiato emocional, e o que não enche barriga não melhora a paciência. Eu sei que eu e ele precisamos discutir a relação, o verão está quase aí e vem pelo correio uns biquínis do Brasil...mas começar outra vez a controlar a alimentação já me deixa de mau humor. Ainda bem que a minha amiga está bem longe (para o bem de nossa amizade).

sábado, 24 de janeiro de 2015

Um pedaço do paraíso plantado na cotê d'azur

Madame Garcia

Minha homônima começou a tarde carregando o dedo com vontade na campainha. Gente, não sei de onde saiu esta história de que os franceses são educados: batem a porta dos carros como se fossem de pedra, se meu padrasto tivesse aqui já saía com um "não tem porta em casa???"; e enterram o dedo na campainha como se estivessem levando uma descarga elétrica, incapazes de afastá-los.
Foi a primeira vez que eu vi a madame Garcia. O marido já tinha conversado com ela, foi quem afinal lhe mostrara o apartamento, visto que o dono mora a quilômetros daqui. Ele disse ser uma velhota simpática, e eu já a havia imaginado em pantufas cor de rosa, dentro de um espesso roupão florido, cabelo branco e crespo, em uma aura de perfume doce, tão doce que chegava a doer o nariz. Eis que quando vi a verdadeira, aborreci-me. É uma velha perua ou uma perua velha. Tacão alto, pernas longas e magras como um flamingo, cabelos pintados de loiro mel. Desatou a entrar no apartamento, sem nenhuma cerimônia foi dizendo que deveríamos ter limpo o elevador no dia da mudança, coisa que tinha avisado ao Fernando e que depois ele esquecera. Ela, toda trabalhada no salto agulha limpou para nós, o que me deixou borrando de vergonha e raiva por sequer ter sabido do ocorrido. A madame, que é a síndica do prédio, veio dar o ar da graça também para dizer que os vizinhos de cima tinham reclamado do barulho do Fabian. Diz que ele corre muito. Ora, achava eu que o barulho não incomodava, visto aqui embaixo ser o estacionamento e se houvesse quem o ouvisse, seria o vizinho do lado. Prometi conter ele pela manhã enquanto ainda é horário de silêncio, e assim tenho feito. Acontece que durante o resto do dia (quando ele vem almoçar ou quando volta da escola) tem sido enervante estar sempre a lhe dizer para ter cuidado com os pés. Os vizinhos de cima já se manifestaram tirando o feltro dos móveis (obrigatório aqui) e andando de salto (proibido). Acho engraçado quando adultos querem ser mais infantis do que as próprias crianças! Se eu tivesse a desenvoltura do Fernando, já tinha ido bater à porta explicar o óbvio: eu não posso atar uma criança à cadeira, nem forrar a casa, nem enfaixar-lhe os pés. Na outra casa, convivi com duas crianças em cima de mim, as duas menores que o meu filho, fazendo tanto ou mais barulho do que ele. São coisas da vida, há que aceitar. Não me incomodo com barulho de criança, incomoda-me muito mais os adultos que agem assim como se fossem os únicos no mundo. Desta vez a madame Garcia não ouviu, mas ouvirá, porque a madame Garcia aqui já não engole mais sapos, nem escargots nem coquilles de Saint Jacques. Se as pessoas aqui não se coíbem em ser mal educadas por que eu iria?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Caí no conto da maternidade

Oh estou tão feliz que tu vais ser mãe amiga, vais ver que agora a vida vai ter outro sentido... Ah são gêmeos? Ô coisa boa, alegria em dobro! Não tô chorando de tristeza não...é só de alegria, só de alegria...ah como é bommm ser mãe!


Em um post que escrevi já faz algum tempo, volta e meia alguém me pergunta sobre como me sinto hoje sobre não gostar de ser mãe. Quando escrevi aquilo o Fabian tinha dois anos, era um menino extremamente agitado em uma simples extensão do bebê exigente que fôra. Eu não sei o que veio primeiro: se o sentimento de não me sentir arrebatada pela experiência de um amor sobrenatural ou a minha própria vivência desprovida de momentos de comercial do dia das mães. 
Neste tempo, o Fabian cresceu, eu mudei, mas o que sinto pouco se alterou. Há dias em que consigo lidar relativamente bem e há dias em que sinto-me em uma prisão perpétua de culpa e desespero, como se estivesse arranhando paredes e maquinando um plano de fuga já por si mesmo fadado ao fracasso. 
É verdade que escolhemos de certa forma a nossa vida, eu escolhi ser mãe. Mas escolhi baseado em um conto, em uma verdade absoluta sustentada por quem já o era. Ninguém me disse que podia ser diferente, que não há uma receita de bolo para o amor. Ainda hoje me surpreende frases de efeito como "ser mãe é viver com o coração fora do corpo". É mesmo? E "eles viram nossa vida de cabeça para baixo, nos fazem perder o sono, a paciência, o dinheiro, mas no fundo vale tudo a pena". Ah é? Eu nunca deixo de pensar se estão mesmo em perfeita sanidade, se não sofrem de síndrome de Estocolmo, segundo a qual os reféns apaixonam-se ou criam afeição pelos seus algozes. 
Há um "eu" e as outras, uma forma dicotômica do mundo da maternidade. Ou é ou não é. Afinal que espécie de mãe não sente que o seu filho é mais importante que ela? Que merece todo o sacrifício que puder lhe ofertar, o que muitas vezes significa abdicar de sua própria felicidade? Neste mundo não há boas e más mães, há tão e somente o papel principal de mãe. E ser mãe é ser assim, dona de um amor incondicional incontestável. Que sei eu, vou ser julgada no tribunal das mães, vou arder no inferno das mães...mas...mas...já não disseram elas que ser mãe era padecer no paraíso? E se este é o paraíso, será então o inferno aquele lugar onde criança não entra? Onde podemos ver novela, comer comida quente e transar sem sermos interrompidos? Será o inferno das mães aquele lugar onde não podem ou não precisam mostrar para o mundo que só elas é que sabem do verdadeiro amor?
Uma voz quase sumida me sussurra quando alguém diz que está grávida: digo parabéns ou boa sorte? Há situações Em que o melhor é não dizer nada, mas hoje não fujo mais. Tento viver com este erro da melhor forma que conseguir, deixo para as outras toda a razão que quiserem, já sei que estou condenada a arder no inferno materno junto com a minha coca cola zero e o coração que nunca viveu fora do meu corpo.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Trocamos corvos por gaivotas

Não, eu não morri. Mas quase. Engraçado por que mudei-me tantas vezes num espaço de três anos que achava que já tinha prática nisto...parece que me enganei. Esta foi a primeira mudança de "mala e cuia" como dizemos na minha terra. Nas outras levamos malas, na de Portugal para o Brasil, algumas caixas, mas o grosso mesmo encontrou o seu destino: vendido ou dado. 
A novela começou na terça quando fomos "avisados" de que a mudança não poderia ocorrer no outro dia pela manhã, visto o caminhão ter se estragado. Ficou combinado então para o mesmo dia às quatro da tarde. Ora, um caminhão vindo dos arredores de Paris, podía-se com certeza contar com algum atraso, o que de fato aconteceu, só não esperávamos que fosse tanto! O rapaz telefonou às onze da manhã dizendo que estava saindo (não mentiu, podia estar saindo do banho), e foi dar com os costados em Schiltigheim às 9 e 20 da noite. Pois, uma viagem que se faz no máximo em seis horas... Nesta altura o marido já estava espumando e eu também havia perdido toda a calma. Que horas iríamos sair, sabendo que nos esperavam  900 km pela frente e que no outro dia tínhamos de estar lá para receber as coisas, assim como tínhamos documentos para resolver da inscrição para a escola do Fabian? 
Os dois rapazes que chegaram não tiveram boa vontade ou neurônios para jogar o tétris a fim de que cada móvel, sacola, ou mala achasse o seu lugar naqueles 17 metros cúbicos. Então ficaram pecando pela burrice, iam e voltavam. Tiravam e tornavam a colocar e nesta dança, quem dançou foi o colchão de casal, assim como duas cadeiras. A brincadeira terminou à uma da madrugada, quando percebemos que se não ficassem estas coisas íamos noite a dentro nisto. O Fabian capotara para o lado ressonando atrás de mim no carro, assim, foi o marido que vistoriou tudo, depositou a chave na correspondência e não olhou para trás. 
A estrada era um traço infinito que escondia-se na escuridão. À nossa frente apenas os dois faróis nos guiavam para casa. Paramos duas ou três vezes para o Fernando tomar café e mesmo eu coruja assumida, tive uma hora em que não havia jeito de permanecer com os olhos abertos. Combinamos que no próximo posto descansaríamos quarenta minutos: acordamos com a ligação da minha mãe duas horas depois. Trintei, to ficando velhota! Mas ainda não tive tempo para panicar.  De volta à estrada, paramos só ao chegar no prédio.
Primeiras considerações: vi mais sol aqui nestes dias do que em um mês na Alsácia. Para mim inverno podia ser isto, um casaco leve e nada mais. Devo ter ficado casca grossa, estou sempre achando que está quente e acho o povo muito exagerado ao se agasalhar. 
Caminhar e sentir o ar da maresia, se espantar como uma criança a cada vez que o sol estende seu manto dourado pela sala, ver as palmeiras como se de um país tropical se tratasse, me faz lembrar de tudo o que passamos para estar hoje aqui. Se alguém me dissesse lá atrás , quando o Fernando ficou desempregado que no fim das contas iríamos morar neste lugar, nestas condições financeiras, eu teria dito "só  se for agora, bora  começar a aventura". Ou via Crucis, vá lá...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Ai ai ai ai...tá chegando a hora

E eu aqui com uma dor de cabeça infernal... Enquanto aguardo a hora de buscar o Fabian na escola, dou uma última passada de olhos pela casa. Hoje virão duas famílias para conhecer o apartamento: um casal com um filho e uma mulher solteira  com duas crianças. Ainda tenho marcado também um rapaz que quer comprar o vidro de proteção para o iPad anunciado há mais de mês e que comprei errado. 
Depois do marido quase me enlouquecer com a paranóia de que a empresa de mudança podia ser fria, eis que está tudo certo. Afinal não atendiam o telefone porque resolveram tirar férias no natal. De noite chega o marido devidamente motorizado, amanhã passamos no Ikea e Leroy Merlin para comprar as caixas e alguns móveis que nos fizeram falta um ano e meio. E decorações, o que der para comprar. Nem acredito que vou finalmente ter um lustre na sala. Eu acho que estou me portando tão bem...passei este tempo todo olhando para um buraco no teto sem me incomodar (tanto). Vá me chama de neurótica marido, que eu acho que sou das poucas que ia aguentar isto!
Enfim, encaixotar nossa vida de novo e pé na estrada. Nove horas de viagem, mais de 900 quilômetros de "já chegamos?", "quando é que nós chegamos?", "deu agora?", mas no fim quando olhar depois da curva da estrada que vai a Nice e ver o mar, as luzes pequeninas como se fossem vagalumes coxilando , vou ser feliz. Tenho certeza de que vou ser muito feliz.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Fabionices

- Mãe, o papai mora lá embaixo?
- Sim... (Apesar do Fernando não gostar, continuo dizendo lá embaixo ao invés de Sul)
- Os pinguins moram lá embaixo?
- Sim...
- Então o papai mora com os pinguins??

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Entre a cruz e a espada

É assim cada vez que eu tento falar sobre os muçulmanos aqui da França. Mais do que ninguém (ou pelo menos do que meus colegas historiadores ratos de biblioteca) sei o que é sentir-me cuturalmente indesejada. Não vou falar sobre a complexidade e a não tão óbvia linha que separa nacionalidade, cultura e religião, no entanto é bom fazer uma ressalva que para a maioria das pessoas isto dá no mesmo: são árabes e pronto. Dizia eu que sei como é sentir-se rechaçado, ouvir comentários, aguentar olhares, gracejos e preconceito sobre a minha "brasilidade" como se esta fosse um defeito de caráter. Não há o que se discutir quanto a isto, a xenofobia é uma realidade dura e persistente na vida de um emigrante. É uma ferida invisível, mas que sangra cada vez que é cutucada e o é em grande parte das vezes, que para não enlouquecer obriguei-me a fingir. Tornei-me dura, é verdade, mais inflexível do que já era. Às vezes tenho um filtro que só deixo cair perante conversas com o meu marido, e com ele troçamos dos outros tanto quanto o fizeram conosco. É uma reação pobre e fútil, talvez infantil, mas acima de tudo inofensiva (não lembro de ninguém  morrer por minha causa). Enfim, entendo muito bem o lado dos muçulmanos.
 Um episódio caricato aconteceu uma semana atrás quando um homem veio ver o apartamento para alugar, e que por acaso, foi o único que falou pois o resto da família não compreendia francês. O cara foi extremamente estúpido comigo, minha vontade inicial foi bater-lhes com a porta na cara, mas suspirei, e no fundo vi a mim mesma anos atrás...era como se a qualquer momento esperasse ser agredida. Eu me encolhi, ele resolveu gritar mais alto do que qualquer um que lhe falasse.
Sobre este atentado, já se sabe que as reações cairão sobre todos eles, radicais ou não. E é isto que me assusta, no primeiro momento dar por mim a odiar pessoas que nem conheço, com a visão atordoada pela covardia. Percebi que é fácil, muito fácil despencar pela raiva. Há muitas coisas que não gosto particularmente na religião que seguem, uma delas me dá um nó e inclusive ouvi de feministas sobre as mulheres "gostarem" de usar véu. É um assunto que fica para a próxima. 
A liberdade de expressão tão acarinhada pelos franceses, foi a vítima deste sistema de frágil convivência. Vocês fingem que se adaptam, nós fingimos que os toleramos. De um lado o humor mordaz e crítico ao qual não escapa nem o papa, nem a Le Pen,  e do outro, a lança fundamentalista de uma religião que lembra a igreja católica da Idade Média. Tão anacrônico quanto um dinossauro a pisotear prédios como se fossem de papel, é a idéia de que há liberdade, fraternidade e igualdade por estes lados.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Stand by

Falta quase uma semana para a mudança e eu ainda não fiz nada. A casa está como se nada fosse acontecer, como se eu simplesmente a fechasse para ir no mercado e voltasse meia hora depois. Mas sei que é apenas questão de tempo para chaveá-la ao meu passado, mais um lugar que já foi nosso e que não podemos voltar. Às paredes tortas, às janelas tortas erguidas algures em 1700, que em breve vão despedir-se de mais um punhado de almas que gestou. Penso se a casa tem memória e se as vive com tanta intensidade como costumo visitar a um mundo que se desvaneceu. Vive e será que recolhe um pouco de nós para sua existência  de barro e toras velhas? Um poeta da minha terra costumava dizer: eles passarão, eu passarinho. Pessoas passam, deixam suas marcas em furos jamais tapados, em bordas ou chão manchado. A casa fica. Parece a própria face da eternidade. Nunca consigo imaginar um edifício em seu lugar, muito menos uma daquelas caixas de vidro que infelizmente se tornaram o "must do" dos engenheiros moderninhos.
Ela parece troçar dos meus receios de que rua quando a abandonarmos. Mas ela é forte, teve de ser. Conserto feridas com um pouco de corretivo. Salpico-a de um branco mais branco do que o papel de parede. Ela sabe que é difícil para mim, terei de domar meus impulsos obsessivos e que aqui estavam finalmente  adormecidos. Já lhe disse que lá onde vou morar o chão é de lajota enviesada? E do quanto vai me custar olhar para baixo e não me dar faniquitos ao pensar quem é que teve a ideia de estragar um apartamento tão bonito? Lajotas enviesadas. Por tudo. Como se fossem a roupa de um arlequim.
Falta quase uma semana para a mudança e eu ainda não fiz nada. Mas de repente parece que fiz muita coisa.
Arlequim chora a cada vez que resolvem assentar lajotas enviesadas ao invés de piso de gente normal.

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