terça-feira, 12 de maio de 2015

Os iates da marina

Quando caminhamos pela praia sempre dou um jeito de olhar para eles, bem lá no fundo, passando os barquinhos, as lanchas, devidamente enfileirados de bunda para nós. Às vezes olho de cima, quando estou em uma espécie de praça-deck que abriga um dos parquinhos da cidade. São como brinquedos de adulto só que de fibra ao invés de plástico, só que caros, extremamente caros para o bolso de 99% da população. 
Estes dias o marido viu que estavam vendendo uma vaga na marina pela pechincha de 230 mil euros, detalhe: vale apenas para dez anos. O preço de um apartamento para estacionar o barquinho por uma década. Mas obviamente, quem teve uns cinco milhões para desembolsar na compra, não está preocupado com esta mixaria. 
Eu sei que estamos em plena época do beijinho no ombro, do cidadão começar a falar e já tem dedo apontando que é inveja. Mas de verdade que não tenho inveja disto (ao menos), tanto que eu penso que mesmo me tornando uma milionária, jamais compraria um iate, na loucura, talvez alugasse um por um fim de semana. Eu acho é obsceno mesmo. Acho obsceno uma pessoa ter a quantidade de dinheiro para comprar um barco que fica parado há mais de três meses. E sim, eles ficam mesmo parados. 
Eu tinha uma professora de história que dizia: o suor do teu trabalho pode comprar uma casa, pode comprar um carro ou dois, pode até comprar duas casas (uma de praia), e te levar para viajar fora do país. Mas o suor do teu trabalho não compra um prédio, nem uma ilha, nem um iate (completo eu). Há muita gente que teve que ser explorada, que teve que ganhar baixos salários, muita sonegação teve que ser feita para que tu pudesses usufruir deste bem. E eu concordo. Acho engraçado virem com aquele papo de comunista, esquerdista, sei lá mais o quê, principalmente vindo de quem é pobre. Então a pessoa acha que se trabalhar muito pode ganhar dinheiro para comprar um iate? Conta esta pro papeleiro que carrega sua carroça doze horas por dia para vender papel a dez centavos o quilo. Ou pro professor de escola pública, ou para a empregada doméstica, ou para o frentista (é aquela pessoa que põe o combustível  para os clientes do posto)*... e a lista segue. Já falei sobre isto aqui mas volto a dizer, a meritocracia me dá asco. Continuando, vendo por outro lado, quer dizer que se aquele sujeito é rico, é por que de fato mereceu? Eike Batista que o diga. As portas se abriram só porque viram que ele era o espírito empreendedor materializado na Terra? Ou será que foi porque o cara já nasceu um tiquinho rico, molhou a mão do governo, pagou mal seus funcionários, teve protecionismo quando os negócios não andavam muito bem?  
Talvez quem possa de fato dizer que comprou um iate com o seu suor, seja algum jogador de futebol. Embora possamos divagar a origem  daquela grana (já que futebolisticamente falando, alguns salários e contratos milionários escondem muita lavagem de dinheiro), talvez o único exemplo legítimo de meritocracia seja o do jogador de futebol. Um grande craque pode vir de qualquer lugar, apesar de vir principalmente das classes mais baixas. Ele pode ter um dom, mas com certeza para que se destaque e possa garantir o seu primeiro milhão, vai ter que dar muito duro e treinar para isto. Se ele conseguir que alguém o agencie, se ele tiver condições de ter um bom treinador, se ele tiver tempo para jogar quatro horas por dia ou mais, se ele tiver tratamento adequado quando surgirem lesões, se ele não arrumar confusão quando o deixarem no banco de reservas, se ele conseguir ser decisivo quando o seu time mais necessitar, então sim, ele mereceu se dar bem. Pena mesmo é que não podemos transpor este sucesso para as restantes profissões, pois eu desconheço um biólogo por exemplo, que possa comprar um jatinho com o seu salário. Seria muito fácil, mas nada lógico ignorarmos todas as estruturas sociais e econômicas que levam a que alguns consigam estacionar um iate sem usá-lo e outros batalhem para pôr comida na mesa. Mas o pior de tudo, é ver que há gente que ache isto justo. Eu não, acho obsceno. Mesmo que o iate preto com cinza que vi hoje, tenha escrito na bunda "Leomar" e que seja de algum jogador brasileiro.

*explicação necessária, pois não existe esta profissão  na maior parte da Europa.

Um comentário:

  1. Meritocracia sem igualdade de oportunidades é aristocracia disfarçada.
    Concordo que é um absurdo.

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