terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Vidas anônimas

Ele acomodou-se na cadeira. Havia silêncio finalmente. Chegou perto do microfone e falou:
- Eu sou um anônimo. Como vocês já sabem. Há algum tempo tenho apenas escutado a reunião dos AAA (associação dos anônimos anônimos) e como não podia deixar de espiar todos os dias os dramas que por aqui passam, resolvi pedir a palavra.  - Do som estridente do computador, algumas vozes murmuraram "olá anônimo". Ele continuou - Algum tempo outro anônimo havia comentado que nunca tinha percebido o quanto sua vida era vazia até encontrar outras vidas de que pudesse adquirir protagonismo. Pois bem, identifico-me com a maioria das vossas histórias. Minha vida também era sem graça, imperfeita. Mas não sou tão bom com as palavras e por isto não conseguia exprimir tudo que ia aqui na minha cabeça. E depois comecei a buscar pessoas que fossem como eu... E sabem o que encontrei? Pessoas fúteis. Pessoas felizes. Pessoas com milhares de seguidores fúteis e felizes. Nem ao menos os seus problemas eram realmente problemas. Onde se preocupar com o que vestir, com o que comprar de roupa para uma festa era um problema? Ninguém conta que não há comida em casa, nem que apanha do marido, nem que o sexo tem sido muito mal em sua vida. Nope. Na internet só encontramos pessoas felizes e com problemas de merda como a dúvida de saber se o sapato combina com a bolsa xadrez. 
No início eu só lia. Lia. Lia. Lia absurdos. E aquilo me irritava. Algo se inflava dentro de mim e eu não sabia o que. Era uma raiva surda das pessoas felizes. Não que eu fosse absolutamente infeliz, mas eu o era em muitos momentos da minha vida. Tantas e tantas vezes sofri e chorei. Ninguém sabia da minha dor. Mas tampouco da minha felicidade. Então porque estas pessoas que estão aí a enfeitar o seu lado rosa acham-se mais do que nós, os simples mortais que não tem tempo para se por a inventar histórias?? - O som retornou ainda mais grave. Desta vez algumas vozes se agigantavam em aprovação.  Chegou a ficar tão alto que uma voz, que pouco intervia, se destacou entre tantas vozes anônimas. Pediu silêncio. E calma. Estavam todos ali para escutar o seu sofrimento e lhe oferecer apoio.
- Então...en-tão eu escrevi. Achei que devia. Foi como se uma avalanche passasse por mim e me deixasse vazio de dor. Aquelas pessoas deviam saber que não se pode fazer isto e esperar só vivas. Alguém precisava ser-lhes a voz da razão. Quem chama à Terra, quem fala aquilo que pensa. Talvez se fossemos todos anônimos existisse mais sinceridade neste mundo a fora. Ou talvez não. 
No início foi apenas um comentário. E em um só lugar. Depois fui descobrindo mais pessoas que precisavam de mim, da minha opinião, da minha razão. Eu chegava em casa e só o que pensava era em ir nos blogs de costume ver o que aquelas alminhas tinham escrito. Depois foi no trabalho, nos intervalos e finalmente durante o trabalho. Minha vida passou a não fazer mais sentido se não comentasse tudo o que viesse na cabeça. E quando nos respondem então? Sensação de vitória, que nos leram e estão com muita raiva. É sinal de que falamos a verdade. 
Acho que todos conhecem esta sensação de onipotência sobre a vida dos outros. É como ser Deus. Mas depois vem o vazio. Afinal nossas vidas continuam imperfeitas e agora reduzidas a uma realidade paralela da qual lutamos para não voltar. Os filhos chamam, a mulher reclama. E ainda é bom enquanto se ouve suas vozes, porque do contrário é sinal de que já desistiram de nós. Quem é que quer ser mulher ou filho de um anônimo anônimo? 
Quero chegar um dia em que venha aqui dizer, como já ouvi, que estou há mais de um ano sem comentar como anônimo. Inclusive já me registrei com um nick bacana e até pus uma foto minha de perfil, mas infelizmente não consigo fazê-lo, é mais forte que eu. De qualquer forma, obrigado por estarem aí. Obrigado por me escutarem.
Do outro lado soaram palmas. Ele fechou os olhos e imaginou seu reflexo na tela do computador, agora muda e escura. Seus dedos tocaram no seu rosto virtual e as lágrimas caíram. E agora quem iria ser a voz da sua razão? A pergunta pairou no quarto fechado, enquanto o cachorro lhe lambia os joelhos, ele sonhava com as vozes que dantes povoavam a casa.

Não me importava nada

de ter um quarto assim!! Até parece que foi feito sob medida para mim, será que há mais alguém neste mundo que gosta tanto de espelhos no quarto como eu?

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Porque hoje não quis cheirar bosta de cavalo



A minha mãe achou legal por o Fabian na aula de equitação. E o pior que ele gostou, já vai na terceira contando a de hoje, sabe pegar na rédea, já segura o pé no estribo, anda praticamente sozinho e por pouco não deixa a professora puxar o cavalo na frente. Eu fui com ele das outras vezes e antes quando só a mãe fazia, mas sei lá, hoje não deu vontade. Já o trouxe até aqui e é bastante.

A filosofia do "eu podia tar"

A porta abre e um monte de gente sobe e desce. O motor arranca e seguimos o trajeto. Quando volto a olhar a paisagem pela janela, escuto uma voz que à princípio luta para se destacar ante as demais. Às vezes olho para trás, às vezes não. Sofro de vergonha alheia, não te contei? A voz continua, a firmeza depende do número de vezes que já se fez aquilo.
"Eu podia tar matando, eu podia tar roubando, mas eu to aqui pedindo uma atenção de vocês para o meu problema que é bla bla bla....bla bla bla". Todos tem histórias muito tristes para contar. Filhos aleijados, pais doentes, mulher morrendo no hospital, ou até eles próprios se apresentam como portadores do vírus da Aids. Só querem um pouco de atenção e moedas. 
Desta vez eu olho para o marido e digo: vai decorando o teu repertório para que se nada der certo, já sabes! Ele começa a ensaiar no meu ouvido: madames et monsieurs... Eu rio. Um pouco culpada, porque lá no fundo sou moça inocente que dá um voto de verdade aquela novela mexicana destas vozes anônimas. E parece pecado rir da desgraça alheia mesmo que inventada.
Deve se ter muito desespero ou cara de pau para ir destrinchando este canavial de doenças e fome e dificuldades. Eu não faria, mesmo que o destino me reserve um sub emprego em uma fábrica ou ser empregada na casa de alguém. Mas nunca faria uma coisa destas se não estivesse em  genuíno desespero. Há talvez quem de fato esteja, mas estes são poucos. O que nos deparamos são mais com aqueles que fazem da mendicância um modo de vida, e mais que se esforçar para um trabalho digno, permanecem ali a pedir, a nos esfregar a miséria (fingida?), em uma forma de nos fazer sentir culpa pela vida boa que levamos. 
Hoje foi uma mulher de uns trinta anos e meio, com dois filhos, um pela mão e outra no colo. Depois de declamar o seu sofrimento tão bem ensaiado e de monótona entonação, recolheu as moedas e saiu a sorrir e a brincar na próxima estação. Se por um lado meu lado crítico a olha de soslaio, por outro fico feliz que ao menos a vida real não lhe parece ser tão madrasta assim.
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