quarta-feira, 10 de abril de 2013

Bolinho de arroz

- Pshiu. A mãe disse que não era para falar.
- Não era para falar o que? - pergunta a mais nova.
- Que o Tonico morreu.
- Ah. Mas ela não sabe?
- Saber, sabe. Viu ele.
- Viu?
- Viu. Todo de branco e cheio de flores.
- Mas se viu porque não pode falar?
- É para não lembrar. Cada vez que se lembra chora que só ela.
- Então e o que dizemos? - Aprumou a saia florida e pôs cuidadosamente as sobras de tecido para baixo das pernas.
- Qualquer coisa. Ou talvez nada.
- Acho que é melhor não dizer nada.
- Isto.
-Olá, Martina, olá Maria.
- Olá. Respondem as meninas em  uníssono.
- O que querem para o almoço? - a empregada coloca o avental e dirige-se à sala novamente.
- Quem sabe bolinho de arroz? - diz a mais nova.
A mulher estanca e com os olhos sem vida pára em direção à janela. O reflexo do vidro desenha seu nariz largo e negro. Os lábios amarronzados se entreabrem e começa a balbuciar - ele...ele...- não termina a frase e lágrimas grossas rolam pela sua cara de cera.
As meninas ficam por segundos a olharem-se e depois fogem para o quarto. A mais velha muito enraivecida:
- Está satisfeita agora? O que a mãe disse?
- Mas...eu não falei nada...
- Não lembra, o Tonico que gostava de bolinho de arroz. Agora a mãe vai ficar braba. Quero só ver se ela vai contar e vai sim. Agora é tua vez de ficar sem sobremesa.
A mais nova cala, calou durante todo o almoço. Era o morto que não lhe saía da cabeça, assim como também não lhe saía a ideia de que os bolinhos estavam salgados demais...

Ai ai

Hoje o Fabian senta à mesa da cozinha com o prato de plástico verde. Coloca uma colher cheia na boca e depois outra. De repente pára, os olhos tristes e diz: sodadi... Saudade de que meu filho? Sodadi do papai. Já tinha perguntado à tarde umas quatro vezes onde o papai estava e eu sempre explicando que tinha ido de avião trabalhar para termos nossa casinha. Esperei que tivesse se aquietado um pouco, mas à noite novamente suspiros e mais suspiros. E pronto, corta o coração esta saudade. Está difícil para nós três...até quando meu Deus?

O ciclo


Cada vez mais acredito que o corpo é um reflexo do que acontece na mente. Ele reflete, ele adoece, ele fica alérgico, ele quebra, ele torce. Não somos um corpo, nós temos um corpo que é simples veículo e palco, mas quem comanda os bastidores é a (in)consciência. O ciclo menstrual também acompanha este ritmo, sei que quando estou mais calma quase não tenho cólicas, a menstruação flui, fica poucos dias e vai embora. Porém, como desta vez estava uma pilha de nervos, quase em ponto de ebolição, fiquei de tal forma que a sorte que já estava chegando à casa dos meus dindos. Fiquei com a calça jeans completamente vermelha, nunca havia me acontecido uma coisa destas. Tive muito fluxo este mês, o desequilíbrio hormonal foi tanto que me deixou com dores de cabeça (o que é raro ter), muito inchada e enjoada. 
Acredito que embora não seja muito bom ser visitada pela monstra, ela nos traz a possibilidade mensal de fazer um balanço em nossas vidas. Traz à tona problemas mal resolvidos, dores, o choro sai mais fácil do que em qualquer altura do mês, nos torna sensíveis (e chatas, mas pronto). É como uma faxina no organismo, ela vai tirando o pó debaixo do tapete, arreda o sofá, a geladeira, tira os cotões de poeira que deixamos complacentemente lá estar, quando só levamos o pano onde passa a procissão. 
É duro, e é uma coisa que os homens jamais irão entender. Quase voltamos à infância em que uma ação aparentemente insignificante toma toda uma proporção inimaginável. Tal como uma frase fora do lugar, um sapato jogado na sala, a falta de um abraço. E sim, é como se nascêssemos novamente e tudo o que precisamos é de colo e proteção. Não é de críticas nem de estupidez. Bom seria se o mundo inteiro nos compreendesse, a começar por nós mulheres, já que todas passamos pelo mesmo. Mas é até ofensa perguntar: tá na tpm? Não. Estou em construção. E destruir e voltar a por tudo no devido lugar, cansa, mói, desgasta as energias. 
É no corpo feminino que a natureza se sobressai: em apenas um mês, nascemos, desenvolvemos, crescemos, envelhecemos e morremos. Todos os meses. E a morte dói. É uma morte simbólica e física ao mesmo tempo. Há dor, há sangue. E depois começa tudo outra vez. Nosso corpo é programado para morrer todos os meses, mas também para nascer, e uma parte é responsabilidade dos hormônios que impulsionam-nos para isto. Aliás, hormônio descende da palavra humor, estão extremamente ligados e relembram-nos de que todo o ciclo da natureza habita em nós. Nascer, viver e morrer, nós mulheres estamos sempre em "construção". 

Um sonho

Esta noite tive um sonho estranho. Sonhei que tinha um amigo que roubava casas e carros e eu ajudava-o. Roubava um carro que era uma beleza, com gente dentro ou com ligação direta, lá íamos nós. No entanto, sabe-se lá porque uma jovem delicada, loira de olhos verdes apareceu e o meu amigo achou por bem acolhê-la no nosso "bando". Acontece que a jovem estava grávida de poucos meses e achei muito má a decisão dele, já que tínhamos uma vida clandestina, sempre a fugir da polícia e com medo que as pessoas nos reconhecessem. Lembro que quanto mais o sonho passava, mais a barriga dela crescia e mais andávamos atarefados à procura de um lugar seguro em que ela pudesse dar à luz. O engraçado era que no sonho eu não tinha gênero, não era homem nem mulher, embora muitas vezes pela afinidade com o marginal, sentisse que estava mais para o lado dele do que do dela. No fim assaltamos uma casa grande que sabíamos que a família havia viajado, mas fomos surpreendidos pela polícia. Foi angustiante porque a jovem estava em trabalho de parto e lutei para ajudá-la a sair. Tive de matar o policial e já havia matado o seu parceiro tempos antes. Sentia que devia continuar e que não havia volta para o caminho que tinha escolhido. Acordei ainda tentando fugir e fiquei com aquela sensação de culpa como se houvesse realmente assassinado duas pessoas que tentavam me impedir de cometer mais crimes.
Acho muito interessante ficar divagando pelos sonhos que tenho, por exemplo, creio que tanto o homem quanto a mulher fazem parte de mim, pois que não tinha gênero. O homem está mais ligado à força, à violência, à transgressão. A mulher grávida, à feminilidade, aceitação passiva, ao medo, à busca de segurança. A criança traz o novo, a mudança, novas possibilidades. 
Acho que trazendo para a vida real, posso avaliar que tenho sido uma pessoa agressiva, sempre com raiva e inconformada com a minha situação. Os roubos significam que quero as coisas, mas sem esforçar-me para isto. Quero uma casa, quero um carro, quero o que os outros tem, mas sem o ônus e o sacrifício que eles fazem para ter. Os policiais que matei são as normas sociais, representam as regras que quero aniquilar, é a pura vontade de fazer o que quero, mas que sou impedida por uma corrente que me prende a uma cultura e  as suas leis. Noto que inicialmente nego este lado mais doce que é o feminino. A criança é um estorvo que não queria, mas ao mesmo tempo poderia significar a mudança no curso de uma vida de erros, a possibilidade de assentar e tomar outro caminho. Noto que apesar de sermos um trio, sempre fora eu quem tomava a iniciativa, o que reforça a ideia de que tanto o homem como a mulher habitam dentro de mim e enquanto o homem age e a mulher espera, eu posso sempre escolher como vou seguir a minha vida. E talvez a criança seja também a esperança de que daqui a pouco algo bom vai acontecer. Mudanças precisam-se. 
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