terça-feira, 1 de abril de 2014

Ninfomaníaca

O empoderamento pela mulher do seu próprio corpo, nu, semi nu ou vestido ainda gera ecos de indignação. Dá licença de tomar o que sempre foi nosso?

*Spoiler

Lars von Trier sambou na cara da sociedade ao abordar dois temas (ainda) tabus: sexo e prazer feminino, ah e claro na verdade uma extensão do último, o estado doentio da busca por este mesmo prazer. Joe conta sua história a um desconhecido que a encontrou jogada em um beco depois de uma surra. Um terço do filme se passa no quarto insosso de seu salvador. Na verdade achei muito interessante o diálogo entre aqueles dois improváveis confidentes: um sessentão que não havia jamais feito sexo e uma mulher no fim dos trinta com um currículo incontável de amantes.
Esta semana rolou na net um protesto chamado "eu não mereço ser estuprada" como forma de reação aos vergonhosos 65% de pessoas que responderam na pesquisa do IPEA que uma mulher com roupas curtas está pedindo para ser abusada. Vou fazer um mea culpa porque eu já fiz parte desta maioria. Eu já olhei com desconfiança quando alguém me contava ou quando lia uma notícia sobre estupro e a primeira coisa que pensava era: ah mas ela tava de saia, não? Como se isto nos colocasse um neon de "foda-me" e o cara ficasse impedido de se conter. Tá mas e o que que tem a ver o cu com as calças (ou a falta delas)?
Ninfomaníaca beira o pornô, mas eu digo beira porque a história é tão densa e cheia de mensagens sutis que somente um adolescente iria enxergar como puro sexo. Joe é a própria luxúria negada a toda mulher direita e mãe de família. Joe fez exatamente aquilo que se espera dos homens, mas ao contrário de receber aprovação da sociedade, o seu comportamento é considerado como doença. A personagem carrega em doses iguais tanto a culpa como o desejo, tanto a revolta como o arrependimento, tanto o prazer como a dor. Através de alguém que busca compreendê-la, vai abrindo-se  dividida em capítulos, sendo encorajada por analogias que ligam o sexo a algo tão banal como o papel de um anzol na pescaria. Ela confia, ele lhe dá motivos para tal, e quando já está completamente entregue ao cansaço e absolvida de seus desvios, eis que seu protetor entra sorrateiramente pela cama. Trazia o membro semi duro pronto para estuprá-la: mas qual era o problema, se ela já tinha transado com tantos?
O corpo feminino ainda é visto como algo material, algo que pode ser vendido, comprado, invadido. O corpo da mulher ainda é visto como público. As pessoas podem julgar, podem fazer cantadas, passar a mão, encoxar no metrô. As pessoas não, os homens. E apesar de termos no Brasil uma relação aberta com a sexualidade, digamos que olhando melhor, esta parece um tanto bizarra. Porque corpo feminino está em tudo: no clip do skank, na propaganda de cerveja, na revista de moda... mas apesar disto, ele ainda é  fetichizado. O corpo da mulher é de todos, menos dela mesma. Pensamentos de que a mulher pelas roupas que veste "atrai" o abuso sexual transferindo toda a culpa para a vítima, de que  seu comportamento na cama legitima que seja chamada de puta, são reflexos claros do quão disfuncional é a nossa sociedade (e nisto incluímos não só homens, mas mulheres com discurso machista que o reproduzem sem tê-lo consciência). A maldição de Joe nada mais é do que a inexatidão em enquadrá-la entre uma figura da clássica vagabunda ou a da doente viciada em sexo, pela falta de pênis, porque se o tivesse seria a sua busca  por prazer considerada ninfomania?


sexta-feira, 28 de março de 2014

E o prêmio vai para



"contos eróticos com carolas"!
Não sei, não sei mesmo porque este indivíduo veio parar aqui. Mas fico imaginando e a primeira coisa que me vem à cabeça são vovós de terço a olhar libidinosamente para o padre, mas pensando bem isto está mais com cara de publicidade de vitamínicos para a terceira idade do que para bem...erótico.

Turisticar

Pode parecer meio esnobe o que vou dizer, mas eu fico perplexa com gente que compra aqueles pacotes de quinze dias pela Europa e já sai dizendo com pompa: conheci a França, achei os franceses assim, assado! O sujeito passa dois dias em Paris e afirma que conhece a "França". Não, fio, você conheceu a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo (de dentro do ônibus de teto aberto porque provavelmente achou perda de tempo enfrentar mais uma fila para aquela vista mixuruca). Você conheceu o Louvre, digo, a Monalisa e consigo imaginar a sua decepção quando viu que era bem pequenininha e passou reto para a Vênus de Milo, olhando com desinteresse as milhares de obras  no corredor. Você transformou uma visita de um dia (ou mais) em duas horas já contando com a fila homérica na entrada. Não, meu querido, você não conheceu a França, ou a Itália porque viu o Coliseu e andou de gôndola ou fez aquela clássica foto empurrando a Torre de Pisa. Você turisticou a França, Portugal, Inglaterra, whatever. Conhecer é uma palavra tão profunda para o que fazem, que acho mesmo que fazer turismo deveria se tornar um verbo. 
Depois que fixamos morada em algum outro país, que acordamos dia após dia com o ranço e ao mesmo tempo a beleza de sermos emigrantes, que sentimos por vezes a "febre da ilha" que é a vontade insana de gritar "Puta que o pariu que que eu to fazendo aqui?! Quero voltar para a minha terra!!", podemos enfim dizer que "conhecemos" a França, os franceses, os americanos, etc. Obviamente que todo conhecimento é flutuante e sofre mudanças consoante o nosso humor e também conforme  amadurecemos. O olhar sobre o outro, a tentativa de se desvendar a si próprio à medida que brincamos de antropólogos, são os ingredientes indispensáveis para uma certa apropriação deste conhecimento. Acho que no fundo, não vou parecer tão esnobe se estas mesmas pessoas tiverem um dia na situação de desconforto que é morar em outro lugar. Porque quando vamos de viagem e vimos coisas, visitamos monumentos, tiramos gigas de fotos e dormimos em uma cama fofa de hotel, estamos sim espairecendo, realizando um sonho talvez, mas voltamos para casa e continuamos quase exatamente como éramos antes de sairmos. Há quem escolha destinos mais exóticos e experimente um pouco deste estranhamento cultural, mas se for para ficar uma semana ou duas, é muito pouco para que realmente mexa conosco. 
 Quando nos dispomos a conhecer, no fundo passamos a saber mais de nós, porque não há conhecimento sem desconstrução, sem comparação, sem paciência e perseverança. Se vamos a lugares e não nos abrimos porque não dá tempo ou não dá jeito, estamos apenas conhecendo coisas inanimadas e fora de contexto e que por não fazerem muito sentido acabam até por desaparecerem da memória. Eu já turistiquei muito e tem tantas fotos que olho e não lembro que já estive ali... Vai ver que é porque nunca ali estive mesmo.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Mais um

De repente me vi como em um tubo no tempo, um tubo que me deu alguma vertigem, confesso, como aqueles elevadores que antes de chegarem em um determinado andar, sobem a bílis até a garganta. Na atmosfera respirava medo, terror. Pessoas gritavam, outras fugiam, escondendo-se como pudessem. O céu  da Alsácia estava nublado e escuro, não sei ao certo que horas eram porque fazia frio e os dias de inverno tem este dom de passar lentamente e nos transpor a um estado de torpor e alheamento. Mas eu vi ele destacado entre tantos soldados, cabelos loiros em um corte militar enquanto dava ordens a eles. Sorri de um modo estranho e o meu capitão não esboçou qualquer empatia por mim. Trazia no cenho o peso do mundo e a aceitação da morte iminente. Quando finalmente mergulhei em seus braços o contato com seu peito forte soube a pouco, não havia tempo, infelizmente na guerra nunca há tempo para o amor. Ele carregou-me pela mão e fomos em direção a uma capela, ninguém lhe negava um casamento às pressas. Depois de casados aos olhos de Deus, saímos em busca de algum lugar para consumá-lo, percorremos ruas fazendo muitas vezes a contra-mão dos que buscavam a salvação. Procuramos casas abandonadas e tivemos o cuidado de evitar as com cadáveres de gente que havia decidido que não daria a chance do destino decidir nada por elas. Entramos em uma casa onde ouvia-se a voz de um homem a falar ininterruptamente e até pensamos tratar-se de uma televisão (pois parecia pertencer a uma família abastada) ou mesmo de um rádio, mas ao abrir a porta nos deparamos com um velhote muito magro. E completamente louco. Já cansados, invadimos um hotel e o gerente disse que não iria cobrar-nos nada ao ver a farda dele, deixou-me que escolhesse o quarto que quisesse. E eu me lembro daquele cabelo loiro e sabia que ele era tu. Tinha os mesmos olhos rasgados que me levavam a ti, o olhar cansado e meio ausente de quem já havia encontrado a morte vezes demais. Não eras um monstro para mim, eras apenas o homem que eu amava e que reencontrava a cada esquina do destino. Lembro-me sim, e não sei como, já estávamos despidos da carne e ias para uma nova existência. Queria com todas as forças assistir ao processo de reencarnação, mas não me foi permitido. Orei. Fechei os olhos e pensei em todo o horror daquelas ruelas, dos gritos, do sangue e do nosso amor. Fechei os olhos e acordei sentindo ainda mais vivo este laço que nos une vida após vida, há muitos séculos atrás... Não sei quando fora a primeira vez, sei apenas que hoje cada vez que meus olhos batem nos teus, há sempre a faísca de um reencontro e um certo despeito por um ponto final.
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