segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Tia Graça

Eu tinha seis anos quando deixei de colar feijões e corda em forma de letras. Sentia-me finalmente grande quando ganhei um caderno com linhas: naquele ano ia aprender a escrever! Julgo nunca ter até hoje encontrado pessoa com mais paciência do que a minha professora da primeira série, a professora Graça. Maria da Graça para a diretora, Gracinha para os pais e Tia Graça para nós. Tinha os cabelos cor de fogo, curtos, porém desgranhados para cima, e a pele tão branca que por vezes misturava-se com os dentes, constantemente à mostra. Era pouco mais alta do que os alunos e vestia calças de abrigo com tênis brancos.
Lembro-me de como eu era chata e insistente assim como meus outros colegas, com o quadro riscado à frente. Levantava-me com os meus garranchos e perguntava se podia mudar de folha ou de linha ou se estava bom a letra daquele tamanho, que torta, ocupava duas linhas ou três. Tia Graça sorria, passava as mãos nos meus cabelos e dizia que sim, com uma voz doce. Às vezes eu penso, poderia ser a vida como a tia Graça? Bem que poderia. A gente assim sem jeito, colecionando tropeços seja por falta de experiência ou de juízo e ela por fim, a nos responder doce e com um sorriso rasgado de que está tudo bem. 
Repito: nunca até hoje descobri criatura tão dotada de paciência...tem horas que eu olho para o meu filho e penso que nem Jó o aguentaria. Queria nestes momentos em que eu como errada, falha e impetuosa que sou, ser agraciada com um fiapo que seja do dom da tia Graça. Mas desconfio que até ela ficaria de cabelos (ainda mais) em pé...

Meu dia

Se resume a:

Mãe, o papai já tá quase demolando?

Mãe, o papai já vai chegá?

Mãe, tu vai botá a ropa em mim puque o pai vai nos levá de avião?

É lá na otra lua, mãe?

Nós vamo na paia? O pai já aumou a casinha pá nois?

Over and over again.

domingo, 31 de agosto de 2014

Um ano

Há exatamente um ano atrás eu estava no último andar do hotel, em um quarto incrivelmente pequeno em Paris. Tínhamos nos abraçado e quase gasto a saudade de quase meio ano separados. Andamos pelos jardins da torre Eiffel, tiramos fotos a três, procuramos um mc donalds para almoçar. Hoje ao contrário do que se passou, foi dia de despedida. Trocamos beijos e promessas sonolentas. Tenho um misto de emoções concentrado no estômago: a alegria juntou-se ao medo e o medo ao arrependimento. Fui eu quem tinha jogado a ideia ao ar de que precisávamos nos mudar, que afinal de contas de que vale ter um salário como empregado se o dinheiro desse apenas para pagar as contas e pouco mais? É preciso arriscar e toda escolha nos cobra um preço...
Nosso amor já nasceu da distância, creio que às vezes é dela que se alimenta, voltando sempre mais forte a cada mergulho nos braços do outro. E sempre achamos que esta será a última vez, o último beijo de despedida, a última saga de conversas no skype, a última vez que tenho de responder zilhões de vezes ao Fabian que o papai vai demorar e que na verdade eu não sei até quando.
Depois de quase dez horas em tgv, o marido chegará em Nice, dormirá em um quarto de hotel e depois em um quarto alugado tal como fizera quando chegou na França. A diferença é que enquanto passa pela provação dos três meses de experiência, estamos na nossa casa, o Fabian na mesma rotina escolar, com a dispensa abastecida e com dinheiro, graças ao destino (ou a nós) bem melhor do que aconteceu no Brasil. E a mim resta esperar e imaginar, tal qual a fatídica cena do Mr. Bean quando encontra o mar da Cotê d'Azur, a vida a imitar a arte.


ps: prometo ter cuidado ao atravessar a rua!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Rotina

Não pôde evitar olhar no espelho o seu rosto cansado no instante que durou o viajar da porta do armário do banheiro. Ele voltou a fechá-lo depois de espremer a pasta de dentes e da segunda vez ela preferiu olhar para o sinal que o marido tinha em cima do ombro, talvez a primeira coisa que reparara quando fizeram sexo anos atrás. Sentia a pele dos seios encostada às costelas, levemente caídos no grau de quem tinha amamentado dois filhos com pouca diferença de idade. Queria dizer-lhe e agora: o que fariam depois de tudo? Depois do mais novo retornar para a casa que dividia com a namorada? Não haviam afinal dito um ao outro que estavam juntos pelas crianças? E agora que já não há mais crianças senão aquelas presas sob os retratos envelhecidos da estante? 
Agarrou o pente e quedou-se a domar os cabelos pintados de loiro para disfarçar os brancos que surgiam cada dia um pouco mais. Os anos foram duros para ela, os anos e o mundo. O peso que caía sobre suas costas, a que ela ajeitava como quem arruma a alça de uma mochila pesada, agora cobrava-lhe implacável. As rugas espalhadas pelos cantos dos olhos, ao redor da boca...rastros das lágrimas e dos sorrisos que abandonara. Olhava para ele retirando as sobrancelhas brancas que manchavam a moldura espessa de seus olhos castanhos. Marcos sempre fora vaidoso, antes fazia a barba todos os dias, agora, faz barba, sobrancelhas, nariz e orelhas. A idade tem destas, começa a faltar cabelo onde tinha de ter e sobrar nos mais variados lugares. 
"Onde foi que nos perdemos?" Ele parou como se tivesse escutado o seu pensamento, mas foi apenas o tempo de mudar de mão a pinça e recomeçar o trabalho paciente que roubava-lhe mais de meia hora. Sabia que ele deitara em outras camas, que além de tudo, o emprego deu-lhe desculpas demais para tal. Mas sabia que agora isto não fazia a menor diferença, que já não sentia mais aquele ardor de mulher traída, nem mesmo o despeito por si mesma, visto que o ciúme daqueles centímetros de carne desapareceu tão logo desapareceram os seus orgasmos. E agora sabia mesmo sem querer, que as constantes idas ao celular, os assovios por nada, a benevolência em sua voz, eram indicativos claros  de que andava entre coxas tenras e jovens novamente. 
Houve tempos em que pensou em arrumar um amante também, mas suas tentativas foram tão desastradas ( o suposto "sarado do 69" era um antigo aluno seu) que desde então ela deixou-se de chats de encontros.  Ele tinha-na avisado que hoje não era para esperá-lo para o jantar, ela nada disse enquanto passava o rímel seguido do batom cor de cereja. Quando as horas passaram e o dia se fez noite, desistiu da lasanha que já esfriava no forno, foi até o congelador e pegou o pote de sorvete. Sentou-se a olhar para as luzes da cidade que acordava, pequenas estrelas cintilando  no asfalto. Enchia a colher e esperava o gelo derreter-se na boca, com a felicidade que a vida lhe dera de comer doces e nunca engordar. Não sabia quando o marido ia lhe responder a pergunta ou se ela de fato a faria. Porque já estavam tão acostumados com o passado, mais que acostumados, fascinados com as ruínas que construíram, que nenhum deles tinha vontade de virar-lhes as costas. Deitou-se depois de vestir a camisola de cetim e sentir os bicos dos seios saltados no tecido. Mas só conseguiu finalmente adormecer quando Marcos deitou-se ao seu lado e apagou a luz.
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