terça-feira, 4 de novembro de 2014

Era uma vez...



Compramos uma bicicleta para o Fabian pela internet. Vinha 95% montada, eles diziam. Pois chegou com os pedais para encaixar (facílimo), o banco para ajustar, o guidon e o freio por arrumar e uma frescurinha de ferro para atar na parte ao lado da roda traseira. Passei por várias fases: a "bricoleur" entusiasmada, a mãe perdida, a adolescente irritada com a porcaria do manual que não diz como montar, a monja que meditava para não arrancar os cabelos, a louca que quase mastigou os parafusos de raiva, a política que sai para procurar alguém que faça o trabalho por si. A história teria um final feliz caso o cara que conserta bicicletas não quisesse 50 euros por fazer o que ele faria com um pé nas costas em dez minutos. Além dos cinquentinha, só vai deixar pronta amanhã. Resignada, anuí em pegar a bicicleta a partir das nove e meia da manhã. Podia ao menos sorrir né? Mas não, o cachorro labrador preto  era muito mais cordial que o dono, me recebeu com o rabo abanando e me deu tchau lambendo minhas mãos. Quando a gente é assaltado assim, faz bem uma atenção destas!



Dá para ver pelas fotos que o senhor recebeu tudo quase de mão beijada. Aff...





Um dia de outono

De repente estava parada em frente à porta da escola do Fabian, levemente encostada no corrimão da ponte que nos leva até ela. Mulheres se aglomeravam a minha volta, falando, falando e falando. Por alguns instantes deixei correr solta minha cusquice habitual, falavam de carros mal estacionados e no quanto isto as enervava. Foi em um clique imperceptível, quando vi, já não estava mais lá. Uma gralha sobrevoou o céu cinzento e como em um feitiço qualquer, todas aquelas vozes transformaram-se em seu lamúrio animal. Crá crá crá. Retumbavam em minha cabeça. Crá crá crá. 
Às vezes a solidão prega-me peças destas, em um minuto estou aqui e no seguinte já estou voando longe. Racionalizei que era-me muito fácil ignorar uma língua ainda estrangeira, uma língua que me diz pouco, quase nada. Chuto-a para o canto assim que ponho os pés dentro de casa. Não quero ver nem tampouco ouvir falar nela. E qual criança birrenta lembro-me do meu desespero quando me tornei emigrante pela primeira vez.  Foi um parto difícil, sentia-me recém arrancada de todo o conforto que conhecia, senti-me lançada a uma luz fria, um terreno hostil. Pronta e nua, a vida disse depois de me parir: fiz a minha parte, agora estás por ti. Não era verdade que estivera só, mas ao mesmo tempo era. Há caminhos que só a solidão pode fazer sentido. Por muito tempo ouvir o português de Portugal me machucava, feria meus ouvidos como se tivesse em uma cela escura a ouvir intermitantemente o mesmo ruído de uma gota a pender rumo ao chão. Hoje não sinto mais esta gana de saber por toda a parte um idioma (ou sotaque) que não é meu, chamando-me à razão de que não pertenço aqui. Ao invés da raiva há o abandono, braços pendidos, pensamentos soltos em espiral. 
Não sei se é do tempo...inverno e outono são para mim as estações mais deprimentes que existem. O céu em armadura opaca proibe o sol de aparecer, mantém-no prisioneiro semanas a fio. E mantém-nos igualmente em estado letárgico, enquanto nossas folhas desabam uma a uma até nada mais restar...

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Fica para a próxima

Fui assaltada por fantasmas e bruxas! Levaram-me todos os doces da casa!
Ano que vem estou pensando em pendurar na porta este cartaz, só  não sei se os vai enxotar ou o contrário .




A infância de hoje

Hoje basta um clique e meu filho pode assistir a um desenho em russo, chinês ou em português de Portugal. Não imagino o que ele consiga captar, mas bem que ensaia umas palavras em japonês ou inglês. Quando quer assistir algum filme, geralmente acabamos por fazer um jogo de adivinhações porque ele começa com "aquele filme, mãe, que tem um menino que sobe num coiso que vua", ou "aquele titio bem velhinho que tem uma casa de balão" ou ainda, "o do leão, do tigui e do pinguim". E quando por algum milagre decora o nome do personagem principal, sai com um "Jerry" (do Estranho mundo de Jack) ou "Bundo" (Dumbo). 
Lembro-me da minha infância, de como era difícil ver o que quer que seja. Tinha de esperar dias a fio, amargar aquela vontade, aguardando que alguém tivesse paciência (e dinheiro) para locar uma fita a qual  veria duas ou três vezes durante o período de aluguel. E o tempo que demorava para rebobinar a fita! Céus! E não podia entregar sem fazê-lo porque esta distração custaria mais 50 centavos no final. E quando a fita emperrava? E quando as cores sumiam ou estava estragada a ponto de não conseguir ver nada e ter de abandona-la ao fim de vinte minutos? 
Será  que aquelas pessoas que dizem de maneira tão arrogante que as gerações de hoje não sabem o que é ter infância lembram-se disto? Para elas infância é sinônimo  de pés descalços, pião e cantigas de roda? Ah é verdade que hoje não se pode brincar livremente nas ruas, em parte culpa do trânsito  que chegou em quase todos os lugares, em parte culpa do mundo que esta cheio de perigos. Se por um lado concordo que o crime tenha aumentado, por outro, há certos perigos que não conhecem época e sim, eu falo de abusos sexuais. Parece-me que naquela tempo as pessoas eram por demais embotadas nestes assuntos, e infelizmente as crianças pagaram por isto. Quando levo o Fabian para brincar na pracinha, fico sempre de olho no que está  fazendo e com quem. Já lhe disse sobre a autonomia que tem sobre seu corpo e como eu queria que tivessem dito a mim anos atrás. Este é mais um dos motivos porque detesto gente que acha que protege crianças não expondo fotos na internet, mas que ao mesmo tempo é tremendamente irresponsável na vida real. Para mim são tão tolas quanto as que acham que tiveram o supra sumo da infância...
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