terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Trocamos corvos por gaivotas

Não, eu não morri. Mas quase. Engraçado por que mudei-me tantas vezes num espaço de três anos que achava que já tinha prática nisto...parece que me enganei. Esta foi a primeira mudança de "mala e cuia" como dizemos na minha terra. Nas outras levamos malas, na de Portugal para o Brasil, algumas caixas, mas o grosso mesmo encontrou o seu destino: vendido ou dado. 
A novela começou na terça quando fomos "avisados" de que a mudança não poderia ocorrer no outro dia pela manhã, visto o caminhão ter se estragado. Ficou combinado então para o mesmo dia às quatro da tarde. Ora, um caminhão vindo dos arredores de Paris, podía-se com certeza contar com algum atraso, o que de fato aconteceu, só não esperávamos que fosse tanto! O rapaz telefonou às onze da manhã dizendo que estava saindo (não mentiu, podia estar saindo do banho), e foi dar com os costados em Schiltigheim às 9 e 20 da noite. Pois, uma viagem que se faz no máximo em seis horas... Nesta altura o marido já estava espumando e eu também havia perdido toda a calma. Que horas iríamos sair, sabendo que nos esperavam  900 km pela frente e que no outro dia tínhamos de estar lá para receber as coisas, assim como tínhamos documentos para resolver da inscrição para a escola do Fabian? 
Os dois rapazes que chegaram não tiveram boa vontade ou neurônios para jogar o tétris a fim de que cada móvel, sacola, ou mala achasse o seu lugar naqueles 17 metros cúbicos. Então ficaram pecando pela burrice, iam e voltavam. Tiravam e tornavam a colocar e nesta dança, quem dançou foi o colchão de casal, assim como duas cadeiras. A brincadeira terminou à uma da madrugada, quando percebemos que se não ficassem estas coisas íamos noite a dentro nisto. O Fabian capotara para o lado ressonando atrás de mim no carro, assim, foi o marido que vistoriou tudo, depositou a chave na correspondência e não olhou para trás. 
A estrada era um traço infinito que escondia-se na escuridão. À nossa frente apenas os dois faróis nos guiavam para casa. Paramos duas ou três vezes para o Fernando tomar café e mesmo eu coruja assumida, tive uma hora em que não havia jeito de permanecer com os olhos abertos. Combinamos que no próximo posto descansaríamos quarenta minutos: acordamos com a ligação da minha mãe duas horas depois. Trintei, to ficando velhota! Mas ainda não tive tempo para panicar.  De volta à estrada, paramos só ao chegar no prédio.
Primeiras considerações: vi mais sol aqui nestes dias do que em um mês na Alsácia. Para mim inverno podia ser isto, um casaco leve e nada mais. Devo ter ficado casca grossa, estou sempre achando que está quente e acho o povo muito exagerado ao se agasalhar. 
Caminhar e sentir o ar da maresia, se espantar como uma criança a cada vez que o sol estende seu manto dourado pela sala, ver as palmeiras como se de um país tropical se tratasse, me faz lembrar de tudo o que passamos para estar hoje aqui. Se alguém me dissesse lá atrás , quando o Fernando ficou desempregado que no fim das contas iríamos morar neste lugar, nestas condições financeiras, eu teria dito "só  se for agora, bora  começar a aventura". Ou via Crucis, vá lá...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Ai ai ai ai...tá chegando a hora

E eu aqui com uma dor de cabeça infernal... Enquanto aguardo a hora de buscar o Fabian na escola, dou uma última passada de olhos pela casa. Hoje virão duas famílias para conhecer o apartamento: um casal com um filho e uma mulher solteira  com duas crianças. Ainda tenho marcado também um rapaz que quer comprar o vidro de proteção para o iPad anunciado há mais de mês e que comprei errado. 
Depois do marido quase me enlouquecer com a paranóia de que a empresa de mudança podia ser fria, eis que está tudo certo. Afinal não atendiam o telefone porque resolveram tirar férias no natal. De noite chega o marido devidamente motorizado, amanhã passamos no Ikea e Leroy Merlin para comprar as caixas e alguns móveis que nos fizeram falta um ano e meio. E decorações, o que der para comprar. Nem acredito que vou finalmente ter um lustre na sala. Eu acho que estou me portando tão bem...passei este tempo todo olhando para um buraco no teto sem me incomodar (tanto). Vá me chama de neurótica marido, que eu acho que sou das poucas que ia aguentar isto!
Enfim, encaixotar nossa vida de novo e pé na estrada. Nove horas de viagem, mais de 900 quilômetros de "já chegamos?", "quando é que nós chegamos?", "deu agora?", mas no fim quando olhar depois da curva da estrada que vai a Nice e ver o mar, as luzes pequeninas como se fossem vagalumes coxilando , vou ser feliz. Tenho certeza de que vou ser muito feliz.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Fabionices

- Mãe, o papai mora lá embaixo?
- Sim... (Apesar do Fernando não gostar, continuo dizendo lá embaixo ao invés de Sul)
- Os pinguins moram lá embaixo?
- Sim...
- Então o papai mora com os pinguins??

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Entre a cruz e a espada

É assim cada vez que eu tento falar sobre os muçulmanos aqui da França. Mais do que ninguém (ou pelo menos do que meus colegas historiadores ratos de biblioteca) sei o que é sentir-me cuturalmente indesejada. Não vou falar sobre a complexidade e a não tão óbvia linha que separa nacionalidade, cultura e religião, no entanto é bom fazer uma ressalva que para a maioria das pessoas isto dá no mesmo: são árabes e pronto. Dizia eu que sei como é sentir-se rechaçado, ouvir comentários, aguentar olhares, gracejos e preconceito sobre a minha "brasilidade" como se esta fosse um defeito de caráter. Não há o que se discutir quanto a isto, a xenofobia é uma realidade dura e persistente na vida de um emigrante. É uma ferida invisível, mas que sangra cada vez que é cutucada e o é em grande parte das vezes, que para não enlouquecer obriguei-me a fingir. Tornei-me dura, é verdade, mais inflexível do que já era. Às vezes tenho um filtro que só deixo cair perante conversas com o meu marido, e com ele troçamos dos outros tanto quanto o fizeram conosco. É uma reação pobre e fútil, talvez infantil, mas acima de tudo inofensiva (não lembro de ninguém  morrer por minha causa). Enfim, entendo muito bem o lado dos muçulmanos.
 Um episódio caricato aconteceu uma semana atrás quando um homem veio ver o apartamento para alugar, e que por acaso, foi o único que falou pois o resto da família não compreendia francês. O cara foi extremamente estúpido comigo, minha vontade inicial foi bater-lhes com a porta na cara, mas suspirei, e no fundo vi a mim mesma anos atrás...era como se a qualquer momento esperasse ser agredida. Eu me encolhi, ele resolveu gritar mais alto do que qualquer um que lhe falasse.
Sobre este atentado, já se sabe que as reações cairão sobre todos eles, radicais ou não. E é isto que me assusta, no primeiro momento dar por mim a odiar pessoas que nem conheço, com a visão atordoada pela covardia. Percebi que é fácil, muito fácil despencar pela raiva. Há muitas coisas que não gosto particularmente na religião que seguem, uma delas me dá um nó e inclusive ouvi de feministas sobre as mulheres "gostarem" de usar véu. É um assunto que fica para a próxima. 
A liberdade de expressão tão acarinhada pelos franceses, foi a vítima deste sistema de frágil convivência. Vocês fingem que se adaptam, nós fingimos que os toleramos. De um lado o humor mordaz e crítico ao qual não escapa nem o papa, nem a Le Pen,  e do outro, a lança fundamentalista de uma religião que lembra a igreja católica da Idade Média. Tão anacrônico quanto um dinossauro a pisotear prédios como se fossem de papel, é a idéia de que há liberdade, fraternidade e igualdade por estes lados.
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