terça-feira, 31 de março de 2009

O Ferro-velho cap 9


Doze anos de silêncio

Uma rodela de limão derrotado, que mostrava as felpas de seu bagaço sobre a água do gelo derretido, entretia seu olhar. Passou a unha escrupulosamente pintada de cor-de-café pelo copo suado. Tinha algo de obsceno naquelas gotas do cilindro magro e comprido. A moça com o yorkshire passou mais uma vez, e já contara sete voltas das nove que dera. Distraíra-se com o céu azul, com o dia frio, porém ensolarado, raro de outono. Isaura descruzara as pernas (aquele sapato a estava matando) e desculpara-se ao roçar nas calças do marido. Ele olhou-a intrigado, pegou em sua mão novamente e continuou a fazer piruetas com seus dedos ossudos. Disse-lhe então, com muita delicadeza:
- Há três anos que me traz aqui nesse bar, que insiste em sentar na mesma mesa e cadeira, que olha para a torre e não me diz nada. Simplesmente olha para o céu, para tudo e não me enxerga. Quer falar alguma coisa difícil, eu sinto que quer, mas não diz, e confesso que tenho medo de ouvir, medo de que os lábios que aprendi a amar me refutem com palavras de fel. Porque, Isaura, porque o mesmo dia, o mesmo horário? Porque aqui? – por uns instantes ele mira-lhe os olhos negros, vê-se refletido em seu vazio, sente-se só, duplamente só. – escuta, estou preparado, diga o que quiser, vou entender: prometo. E se você... – Isaura interrompe-lhe com uma das mãos.
- Não é nada disso. Eu te amo, amo, sempre amei. Como você já sabe, é uma coisa muito difícil, é um segredo.
- Confia-o a mim, por favor.
- Não é tão simples...tenho medo.
- Nada feri mais que o seu silêncio. Acredite. – disse com tanta intensidade, carregando no erres (falava em português com ela para que não se sentisse tão deslocada naquele país), que ela cedeu às palavras e ao choro; pegou o caminho de volta àquela tarde quente de setembro.
- Nós tivemos um filho...um filho, Jean!! – ia cuspindo as palavras, em uma logorréia infinda. Falou-lhe de Romulo como nunca o dissera, não o poupara de nada, das surras, dos estupros com a garrafa de cachaça, da miséria em que criou o primeiro filho e finalmente da gravidez e do nascimento da filha, naquele dia. – durante todo esse tempo, nem ao menos sabia se fora indiscreta (Diabos, aquela gente com mania de sussurrar! Depois faziam filmes para escandalizar seus modos frios...), se levantara a voz ao expor sua podridão, mas se assim agira, não se envergonhava, por muito tempo envergonhou-se de suas lembranças. Quando se calou, pode sentir o olhar de Jean sobre ela, não o via, mas podia sentir mágoa, reprovação, perguntas desordenadas prestes a explodir em sua face. Ao invés da enxurrada de emoções, o marido limitou-se a uma pergunta, e talvez a tivesse escolhido a dedo, golpeando-a com os olhos azuis:
- Como pôde? – Isaura fitou-o exausta, tinha o ralo buço suado, as bochechas ruborizadas. Não tinha fôlego para mais nada, estava entregue ao seu julgamento. Com muito esforço murmurou:
- Você disse que ia perdoar...não importava o que fosse, disse que ia perdoar... – levantando-se da cadeira, Jean atirou com raiva as luvas de couro (ele sabia como a enfurecia andar com as mãos geladas, mãos tão magras aquelas!) sobre a mesa. Mas disse baixo:
- Durante todo esse tempo...como pode me esconder? Diz, como posso perdoar...é um filho, Isaura, um filho que você relutou em me dar e, estava lá, além do oceano, longe de mim... – pensou em ir, mas deu meia volta: precisava saber – Quanto tempo? Quantos anos?
- Doze... – sua voz saiu sumida, tinha a impressão de que só saíra a fumaça da respiração. E foi a última coisa que Jean escutou, depois disso virou-lhe as costas e correu em direção à Torre Eiffel como se esta fosse a esfinge que pudesse devorá-lo.
Isaura chorava, olhava ao redor e chorava, tudo a fazia chorar. Olhou para as mãos nuas do marido, ao longe, e chorava.

O Ferro-velho cap 8




Ônibus da meia-noite

Estava friozinho, as nuvens não se distinguiam do céu brumoso, movimentavam-se pesadas, assim como um caramujo arrastando-se no asfalto depois de um dia quente. O ar parecia mais leve, o barulho dos carros menos irritante e as árvores agradeciam aos transeuntes, ofertando suas flores e as que não as possuíam, deixavam cair as folhas mais belas, como se acreditassem que eles fossem os responsáveis por entardecer tão fresco.
Fazia tempo que os dias terrivelmente quentes predominavam naquele estado. Previa-se chuva para outros lugares, frio e às vezes até mesmo neve, mas ali continuava tudo igual: um quadro pintado por um artista insensato. E as pessoas que atravessavam as ruas esburacadas e repletas de remendos, os cachorros vira-latas que enfrentavam o trânsito, o motorista que os xingava e as crianças que jogavam bola no campinho, eram personagens a se movimentar no espaço daquela tela infinita.
Mas parecia que ia chover...que alegria! Os meninos sequer interromperam a brincadeira, as moças se escondiam em suas pastas e as velhas de pernas cambotas, tentavam correr com suas sacolas de feira inutilmente. Alguns paravam seu caminhar e quedavam-se a contemplar o chuvisco tímido molhando as calçadas sujas. Um homem já maduro, ria como criança, na chuva, mostrando os dentes cariados ao sentir a água gelada tocar em sua careca.
Josué observava de dentro da rodoviária, sentado no banco de um bar, tomando café e mordendo um pastel de carne pingando a óleo. Estava calmo, com os olhos absorvendo a paisagem urbana, rindo sozinho das pobres senhoras de cabelos longos e grisalhos. Deu vontade de gritar: “não foge irmã, essa chuva foi Jesus que te mandou! Ele voltará!”.
Havia perguntas que nunca fizera na escola: “de onde vem a chuva, professora?” De repente ficou sério, o machucado ardeu pelo retesar dos lábios: era muito grande para fazer essas perguntas ingênuas. Levantou-se dali e colocou nas costas a bagagem, tocou na cabeça de uma menina que tomava suco, quis machucá-la, mas com expressão seca, deu-lhe os últimos trocados que estavam em seu bolso. Não vira seu sorriso.
Ficou a ler com dificuldade as manchetes na banca de revista enquanto aguardava o ônibus. O relógio pendurado à parede estava parado, e ele tinha vergonha de pedir as horas ao dono da tabacaria. Via com certa agonia o homem consultá-lo a todo momento. Talvez sua esposa o estivesse esperando em casa e os filhos o abraçassem quando abrisse o portão. Josué daria qualquer coisa para saber que horas eram. Tentou se concentrar no ruído da chuva batendo no caletão. Era uma música tranqüilizante, viajou em sua dança ritmada pelo vento. Tinha os olhos cerrados quando alguém o tocou no rosto. Agarrou fino braço, sobressaltado, pensando estar sendo roubado, e olhou perplexo para a menina do bar a sua frente.
- O que você quer?
- Calma! Eu também to esperando o ônibus. – apontou com a cabeça para o box vinte e três.
- Você vai naquele?
- É, você também, né? – ele soltou-a.
- Desculpe, eu me assustei. Não faça mais isso.
- O que você fez aqui? – apontou para seus lábios.
- Nada. Um machucado besta. – rosnou contrariado.
- Quer um chiclé?
- Não.
- Porque me deu dinheiro?
- Achei que precisaria. E você, porque veio até esse banco?
- Tome, achei que precisaria. – disse rindo ao lhe devolver a carteira de identidade, amassada entre os trocados que lhe ofertara.
- É perigoso andar por aqui sozinha. Onde estão seus pais? (tomou com a avidez de um egoísta as notas e a carteira de suas mãos).
- Minha tia vai estar esperando quando eu chegar lá.
- Parece que já são meia noite – Josué bocejou ao ver o ônibus estacionar. . vamos, pega suas coisas.
- Só tenho essa mochila.
- Isso tá me cheirando a criança fugida.
- Não se preocupe, moço. Não sou mais criança, já tenho doze.
- É...com sua idade eu também não era. – disse-lhe colocando suas tralhas no bagageiro e entrando para procurar seu banco. – poltrona dezessete...dezessete...aqui.
- Vou sentar do seu lado, o ônibus da meia-noite nunca enche. Mas vou na janela! – e mais que ligeiro pulou para o seu lugar antes que Josué pudesse dizer qualquer coisa. Colocou a mochila cor-de-rosa sobre as pernas e sorriu-lhe satisfeita. Josué com o rosto amarelado pelas luzes irritantes de leitura, relutante, sentou-se pesadamente, desejando se livrar de sua inquieta companhia. Castigava a cadeira por sua brabeza, apertava-a, espremia-a contra suas costas. Não falou nada. Saíram da cidade, adentraram a BR e ele mudo, testa franzida. Via com o canto dos olhos ela fitá-lo incessante, buscando um momento de distração sua para iniciar a tagarelice. O pior era que não conseguia relaxar sentindo-se observado, se mexia, apertava as pálpebras, procurava esquecê-la. De repente ouviu:
- Meu nome é Virgínia e o seu?
Fingiu dormir. Fingiu que não escutava voz nenhuma, que não estava sobre a estrada, que não existia mais nada além da irmã se agarrando em suas pernas, implorando para que não a abandonasse naquele sítio. Seria melhor para ela que a deixasse. Pedro cuidaria bem dela, era um bom rapaz. Mas como era triste a sina dos homens: não sabem amar sem prender o que amam. E agora lembrava das flores roubadas de jardins alheios: antes que murchassem, eram atiradas em um lixo qualquer. Alina era assim? O que restara de suas pétalas vistosas poderia ser largado, banido de seu pensamento? Ou era a ela mesma que beneficiaria com a ausência de um irresponsável que não sabia diferenciar sexo de amor? Mas ele sabia que era tudo para Alina. E sabia que ela o perdoara e continuara a lhe corresponder as carícias, mesmo consciente de que o que faziam não era certo.
Desembarcou sonambúlico, tudo o que fazia se tornava parte de um sonho, a mala que escorregou do bagageiro para suas mãos, o ruído dos grilos, a mão da menina abanando, acompanhada de uma mulher que mais parecia dona de prostíbulo. Precisava ver a irmã, carregá-la para o destino de um incestuoso incorrigível (isso porque não se pode mudar o curso de um sentimento: são como oceanos que se encontram, as águas frias da razão vencidas pelas águas quentes do desejo).
Caminhou sendo seguido pelos sons da noite, a trilha de chão batido, o mato espesso cobrindo suas bordas, um que outro farfalhar, olhava somente a luz da lua que carregava em suas mãos: a lanterna lá de cima, estava com as pilhas fracas de Deus.

segunda-feira, 30 de março de 2009

O Ferro-velho cap 7


Alina e o bebê


Amanheceu um dia lindo, a carícia de uma brisa brincava, balançando as copas das árvores, que por sua vez, acordavam os ninhos de joão-de-barro e as lagartas preguiçosas em seu arrastar costumeiro. Como a natureza era maravilhosa! Como suas leis eram belas e perfeitas, não esquecendo nenhum ser vivo em suas mãos ditosas! Alina aprendera que Deus fizera a natureza e que também fizera o homem, seu irmão, para zelar pela sua manutenção. Mas o irmão era relapso, egoísta e acomodado: queria somente o que ela lhe oferecia sem nada dar em troca...
Porque Deus não fizera o homem como a natureza, belo e perfeito? “Porque Deus lhe dera o livre-arbítrio, a oportunidade de livre escolha”, elucidava a vó Pedra, sua vizinha. Tinha mania de falar difícil, uma linguagem de livros, talvez dos livros que ela tirava essas coisas tão curiosas...e Alina seguia com suas perguntas: “e porque o homem sempre escolhe o mal?” “nem todos escolhem o mal, e minha filha, talvez seja porque este lhes pareça o caminho mais fácil, mais agradável às coisas passageiras....mas nem todos se iludem, nem todos”...Retrucava a senhora, plena de convicção. Alina ficava quieta, guardando para si as dúvidas sem respostas satisfeitas e inventando para elas as que lhe parecessem mais aceitáveis. Pensava: “são as pessoas que não conseguem viver em paz, no fundo, ninguém quer ficar em paz...”.Enquanto vó Pedra a afastava do corpo de uma mulher que sucumbira a uma bala perdida. A poucos metros, atravessava um moleque de costelas translúcidas com a sacola de compras que a morta deixara.
O rapaz magricela interrompeu seu divagar:
- Teve uma boa noite?
- Sim...eu estava aqui pensando numa coisa...
- Diga, minha flor.
- É que... – Alina passava uma flor de ipê roxa pelas canelas e pés, uma flor que juntara do chão. – é que você acha que vai doer? – falou com a cabeça baixa, constrangida.
- Doer o que?
- Você sabe, o bebê.
- Eu não sei...não sei, sinceramente... – Pedro tinha em mente a cena de um filme, só lembrava de que tivera que baixar muito o volume, a atriz se esganiçava na tela muda, as pernas incrivelmente abertas: humilhação e dor.
- E depois que ele nascer, você acha que o Josué vai dar atenção só pra ele? – Nesse momento ela virou-se e encarou-o com os olhos cinzentos rasos d’água. O rapaz ficou por alguns minutos assobiando e afagando seus cabelos louros, até perceber que ela chorava de mansinho.
- Não criança. Não, o Josué não vai deixar de gostar de você só por causa dele. – olhou para seu ventre sorrindo e continuou a assobiar. – bem, acho que estou com fome: vou fazer um café para nós três.
Alina levantou-se sacudindo as folhas grudadas em seu vestido e se pôs a caminhar pelo sítio. Pedro a observava da janela do trailler, enquanto passava manteiga no pão. Sentia pena dela...sentia vontade de poder amenizar um pouco seu sofrimento que parecia-lhe adulto demais para aquele corpo. Mas a vida era assim mesmo...Ficou imaginando-a com um neném nos braços e já não tinha tanta certeza sobre o que dissera algum tempo atrás...Talvez Josué perdesse sua consideração de irmão mais velho e responsável por ela (“o crime fazia, como os santos, milagres”), e talvez também nem sequer voltasse.
A mocinha entrou faceira quando ele a chamou.
- Que felicidade toda é essa?
- Eu estava escolhendo o nome pro bebê...que você acha de Carina se for menina e Fabrício se for menino?
- São bonitos... – disse-lhe aliviado pela sua alegria.
- Não, melhor: se for menino, vou chamar ele de Pedro! – seu entusiasmo parecia indicar a descoberta do nome certo para uma boneca nova.
- Você gosta do meu nome?
- Gosto de ti. – mordeu o sanduíche e brilharam-lhe os olhos melífluos. Pedro riu também, sem coragem para refletir sobre o que ela dissera.
À noite em sua cama estreita e desconfortável, matutava sobre o que faria caso o amigo não viesse. Pensou, pensou e acabou por dormir cansado, sem achar solução.
Pedro acordou assustado com os gritos de Alina. Todo suado, levantou-se o mais rápido que pôde para acudi-la, ainda meio sonolento e sem entender o que acontecia...Achegou-se no sofá onde ela dormia, e deu com seus lençóis ensangüentados e Alina chorando desesperada: era triste a cena da menina agarrada em sua boneca, tremendo de dor e medo pelo ser que esperneava em suas entranhas. Ela agarrara-se nele, em sua camiseta de física empapada e seus dedinhos comprimiram os ombros de Pedro, enquanto ela toda se sacudia em soluços de pavor. Ele tinha que pensar depressa, na hora, não lhe ocorreu de pegar uma bacia com água fervente, nem panos, nem nada. Só lembrou-se (como no filme) de deitá-la e abrir-lhe as pernas à força, a medida em que gritava para respirar fundo e empurrar...empurrar...empurrar...
Alina não conseguia. Fraquejava, tinha náuseas e febre...As lágrimas lhe caíam viscosas pelo rosto vermelho e molestado pelos cabelos desgrenhados. Pedro exasperava-se: via já a cabeça da criança que sufocava, presa, sem entrar novamente, nem sair para a vida que se fazia mais distante do que os centímetros que faltavam.
O rapaz pegou a tesoura de jardineiro que encontrara em cima da pia para lavar, ainda suja da terra, e assim mesmo, cortou o cordão umbilical. Não pode descrever o que sentia...o que sentiu ao pegar aquela coisinha minúscula, de mãozinhas delicadas, de crânio mole, mole. Não dera um vagido: os lábios de um natimorto eram o retrato da desistência, eram o cru sentimento da desistência, misturado com uma certa descrença nas leis naturais, tão vã fora sua preparação no corpo materno. E ele o pegou ainda quente do útero, saiu correndo antes que Alina estranhasse a ausência de seus gritos de protesto pela claridade e frio, com o cuidado de quem acreditava na possibilidade de uma ressurreição. Cavou uma cova rasa, evitando olhar para seu sexo. Natimortos não tem sexo: de que adiantaria pensar em nomes, em planos, se a morte os atropelou relembrando ao homem o seu grácil lugar no mundo? Depositou a terra sobre seu corpo, a princípio com medo de feri-lo, tornou-se aos poucos, impaciente com sua pieguice. Mas ao cobrir o rostinho de feições miniaturais, sentiu uma irreprimível vontade de urrar, e o fez com tanta dor e agonia que os cachorros o cheiraram e puseram-se a uivar também como doidos. Pedro acordou do pesadelo com lágrimas nos olhos e o travesseiro úmido, espiou Alina que ressonava e foi à cozinha beber água: tinha a boca seca como se tivesse gritado a noite toda.

O Ferro-velho cap 6


O acordo


- Este quarto não é o mesmo sem o espelho.
- O que houve com o espelho?
- Quebrou, filho, quebrou... – o jovem permanecia em pé olhando para a mão esquerda do homem à sua frente. Ela estava enrolada em uma atadura manchada de sangue enegrecido. Ele agia com cautela: “esse homem é louco...quebrou o espelho, desfigurou o próprio rosto...”
- Chegue mais perto, filho.
- Mas nós já não tínhamos tratado?... – estava com medo daquela voz rouca, mas demonstrá-lo seria o mesmo que assinar sua sentença de morte.
- Mas ainda não falamos de uma coisa...
- Acha que não estou apto para o serviço?
- Certamente que está.
- Não estou entendendo...aonde quer chegar?
- Você é bonito... – ele aproximava seu rosto da luz.
- Eu não...
- Psshhh... – silenciou-o – não reparou uma coisa em meus homens?
- N-não...o que...nãoooooo!!!
- Segurem-no rapazes.
O homem passou a mão machucada com delicadeza em suas bochechas, em seus olhos, em seus lábios. O jovem prendia a respiração a cada vez que saia da ferida o cheiro de sangue seco que tanto detestava, e fechava os olhos com receio de abri-los novamente. Ele aproximou-se o máximo possível e sussurrou-lhe:
- É que todos tem os lábios cortados! – disse isso e desferiu um violento e certeiro golpe. Depois ergueu a lâmina espelhada e tingida de sangue, revelando-a aos que assistiam à cena. – isso é para recordarmos de que o silêncio é sempre a melhor opção. Lembre-se de que somos uma família. Você é um dos nossos agora. Vai, pode ir.
Os capangas o soltaram de volta no chão. Ele saiu correndo, sem olhar para trás, apavorado com o sangue que escorria de maneira vertiginosa. Corria com dois dedos no corte e os outros na boca para estancar sua ânsia de vomitar. Pensou em ir para o hospital, mas era muito arriscado, decidiu por subir o morro, no terreiro de seu Afonso, ele cuidaria daquilo, pois suas ervas nunca decepcionaram.
Estava uma noite fresca e estrelada. A lua escondia-se por entre as nuvens que mais pareciam vestígios de fogos de artifício de tão tênue que era seu circular vaporoso pelo céu de ébano.
Eram oito e meia e podia-se ver o movimento de ir e vir dos moradores ou para o culto evangélico, ou para a umbanda e candomblé ou mesmo para o “Deus me acuda” de mais uma noite no desvio do crime.
Ele adentrou no terreiro calado. Não sem antes encarar a santa de rosto pintado de rubro, parada à porta, que tanto o assustara na infância. Assim ficou durante quase toda a cerimônia, os olhos baixos com nojo daquela gente que girava como lençóis de pontas sujas pela lama: assim eram os pés negros dançando ensandecidos ao ritmo de tambores. Josué tinha ainda os olhos baixos quando seu Afonso sentou-se ao seu lado. Ao ouvir que o banco de madeira descascado e repintado rangera, o rapaz buscou incansavelmente os olhos do velho. Tremia e suava de febre; sentia frio e medo, muito medo. No fundo desconfiava que nem mesmo ele pudesse ajudá-lo. Desejava que sua voz grave como devia ser a voz de sua consciência muda o estremecesse como aconteceu naquele instante:
- Que tu tá fazendo aqui fio?
- Eu estou precisando de ajuda...
- Ôcês só vem quando percisa... – falou sacudindo a cabeça branca como a entender a desobediência dos jovens. – mas duma coisa vô ti avisá, fio: si veio aqui pra pidi remédio pro corpo o pai José tem, mas pra alma...essa só a cossciência limpa podi curá...
- Eu estou com muito medo...
- Nóis não podi interfiri em nada. O fio já escoieiu o camino dele e não podi mais vortá atrais.
- Me ajuda pai José... – falou baixo prestes a chorar.
- Toma, isso aqui vai resorvê – falou ignorando seu arrependimento. O velho puxou alguns ramos de folha da camisa surrada e deu-lhe – é pra passá antes de deitá.
- Não vou conseguir dormir...
- Fio – o preto mirou-o nos olhos firmemente com suas órbitas amareladas e repletas de vazinhos ( Josué daria tudo para se perder naquelas ruelas e esquecer o que o trouxera até ali); depois tocou a ferida, analisando-a e, parecendo ver o que ninguém percebia, fez com que parasse de sangrar. – isso aqui os home do cosa ruim botaram em ti. Isso qui não se apaga...só cá morte. Ôcê tem medo di morrê, fio?
- Eu não sei...
- Pensa na minina. Tira ela do caminho do cosa ruim. Tu deve de sabê porque tô ti dizendo, tu não é burro, causa di que tu imbarrigô ela i ninguém disconfiô.
- Ela tá bem?
- Nóis tá mió cá nossa sombra que se tivesse com quem nóis ama.
Pai José retirou-se para atender as pessoas que o aguardavam e deixou-o largado as próprias dúvidas, como um menino analisando a profundidade de um lago turvo. Nada mais disse a Josué, que sem forças, observou sua corcunda desaparecer na multidão branca sacudindo-se no terreiro de chão batido. Foi embora triste, a cabeça cheia de sons acusatórios. Sentiu que a santa o encarava pelas costas, em sua casinha vermelha, envolta em velas e flores. Tinha medo e raiva daquele sorriso. Sorriso cínico. Mas era só uma imagem...e imagens nada podem fazer. Pior eram os seus “filhos” que andavam por aí. E era talvez disso que ela ria...
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