segunda-feira, 7 de abril de 2014

Adão

A primeira vez que me dei conta dele foi quando bateram violentamente em uma das janelas da sala. Ou em todas porque agora já não lembro mais. A lateral da casa dá para a calçada e temos de tomar muito cuidado para não assolapar alguém que esteja passando quando abrimos ou fechamos as janelas. Pensamos que era por isto, alguma delas tinha escapado do trinco e estava abanando. O marido foi espiar e voltou dizendo que tinha sido um menino que o fizera e a mãe tinha se desculpado. Nas outras vezes que aconteceu  ignoramos completamente pois sabíamos que era ele. 
Depois o vi milhares de vezes a chegar com sua mãe ora no carrinho, ora pela mão arrastando-a. Mas foi só semana passada que notei que a senhora além dos olhos muito azuis era vesga, não que isto a fizesse pior que os outros, mas me culpei por não o ter notado antes, logo eu que gosto de me achar boa observadora. 
Descobri que ele era colega do meu filho, mas sempre fica acompanhado pela mãe, faz todas as atividades sempre perto dela, porque ele tende a querer fugir e não tem muita coordenação motora. Adão tem síndrome de down e o Fabian nunca tinha mencionado a sua existência. Simplesmente me disse estes dias que o Adão batia nos amigos. E eu tentei lhe dizer que o Adão é diferente, não queria que ele tivesse a impressão de que o menino era mau, mas que ele controlava pouco os seus movimentos muito agitados. O Fabian não quis saber da minha explicação, para ele o colega era igual a qualquer outro, era apenas um dos que "batem" nos amigos tal como ele o faz (às vezes)...

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Fabionices



É preciso atravessar dois semáforos sempre que vou levar ou buscar o Fabian na escola. Ontem quando íamos voltando para casa, reparei que ao meu lado tinha um homem cego esperando também que o sinal abrisse. Titubeei :  ai, será que ajudo? Eu sei que  eles tem o sistema de se débrouiller e às vezes temos que guardar a gentileza no bolso e respeitar como funcionam as coisas aqui. Além do mais o sinal é luminoso e sonoro. 
O homem atravessou normalmente quando ouviu o barulho, passou pela calçada em direção ao segundo semáforo. Apalpava o mundo com a sua bengala de metal. Foi andando, avançando, e não  parou quando passou pelas pequenas bolas de concreto que existem para avisá-los de que ali começa o asfalto. Segurei levemente no seu ombro, impedindo-o de continuar. Disse-lhe que não estava verde ainda e ele agradeceu. Depois quando finalmente abriu o sinal para nós, vi que ele caminhava na diagonal, passando por uma pequena ilha, se distanciando cada vez mais da faixa de pedestres. Lá sai eu puxando o guri pela mão para catar o cego e trazê-lo de volta à segurança. Depois de nos despedirmos, o Fabian que tinha permanecido muito quieto até ali, ergueu a cabeça emoldurada pela franja:
- Mãe, poque o titio tem aquele negócio?
- Aquilo é uma bengala. Os olhos do titio estão estragados, por isto ele precisa de uma para poder "enxergar".
- Mais e poque ele não vai na dotôra pa arrumá os olhos?
- Porque nem tudo que estraga tem conserto, meu filho...  

quarta-feira, 2 de abril de 2014

terça-feira, 1 de abril de 2014

Ninfomaníaca

O empoderamento pela mulher do seu próprio corpo, nu, semi nu ou vestido ainda gera ecos de indignação. Dá licença de tomar o que sempre foi nosso?

*Spoiler

Lars von Trier sambou na cara da sociedade ao abordar dois temas (ainda) tabus: sexo e prazer feminino, ah e claro na verdade uma extensão do último, o estado doentio da busca por este mesmo prazer. Joe conta sua história a um desconhecido que a encontrou jogada em um beco depois de uma surra. Um terço do filme se passa no quarto insosso de seu salvador. Na verdade achei muito interessante o diálogo entre aqueles dois improváveis confidentes: um sessentão que não havia jamais feito sexo e uma mulher no fim dos trinta com um currículo incontável de amantes.
Esta semana rolou na net um protesto chamado "eu não mereço ser estuprada" como forma de reação aos vergonhosos 65% de pessoas que responderam na pesquisa do IPEA que uma mulher com roupas curtas está pedindo para ser abusada. Vou fazer um mea culpa porque eu já fiz parte desta maioria. Eu já olhei com desconfiança quando alguém me contava ou quando lia uma notícia sobre estupro e a primeira coisa que pensava era: ah mas ela tava de saia, não? Como se isto nos colocasse um neon de "foda-me" e o cara ficasse impedido de se conter. Tá mas e o que que tem a ver o cu com as calças (ou a falta delas)?
Ninfomaníaca beira o pornô, mas eu digo beira porque a história é tão densa e cheia de mensagens sutis que somente um adolescente iria enxergar como puro sexo. Joe é a própria luxúria negada a toda mulher direita e mãe de família. Joe fez exatamente aquilo que se espera dos homens, mas ao contrário de receber aprovação da sociedade, o seu comportamento é considerado como doença. A personagem carrega em doses iguais tanto a culpa como o desejo, tanto a revolta como o arrependimento, tanto o prazer como a dor. Através de alguém que busca compreendê-la, vai abrindo-se  dividida em capítulos, sendo encorajada por analogias que ligam o sexo a algo tão banal como o papel de um anzol na pescaria. Ela confia, ele lhe dá motivos para tal, e quando já está completamente entregue ao cansaço e absolvida de seus desvios, eis que seu protetor entra sorrateiramente pela cama. Trazia o membro semi duro pronto para estuprá-la: mas qual era o problema, se ela já tinha transado com tantos?
O corpo feminino ainda é visto como algo material, algo que pode ser vendido, comprado, invadido. O corpo da mulher ainda é visto como público. As pessoas podem julgar, podem fazer cantadas, passar a mão, encoxar no metrô. As pessoas não, os homens. E apesar de termos no Brasil uma relação aberta com a sexualidade, digamos que olhando melhor, esta parece um tanto bizarra. Porque corpo feminino está em tudo: no clip do skank, na propaganda de cerveja, na revista de moda... mas apesar disto, ele ainda é  fetichizado. O corpo da mulher é de todos, menos dela mesma. Pensamentos de que a mulher pelas roupas que veste "atrai" o abuso sexual transferindo toda a culpa para a vítima, de que  seu comportamento na cama legitima que seja chamada de puta, são reflexos claros do quão disfuncional é a nossa sociedade (e nisto incluímos não só homens, mas mulheres com discurso machista que o reproduzem sem tê-lo consciência). A maldição de Joe nada mais é do que a inexatidão em enquadrá-la entre uma figura da clássica vagabunda ou a da doente viciada em sexo, pela falta de pênis, porque se o tivesse seria a sua busca  por prazer considerada ninfomania?


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