domingo, 31 de agosto de 2014

Um ano

Há exatamente um ano atrás eu estava no último andar do hotel, em um quarto incrivelmente pequeno em Paris. Tínhamos nos abraçado e quase gasto a saudade de quase meio ano separados. Andamos pelos jardins da torre Eiffel, tiramos fotos a três, procuramos um mc donalds para almoçar. Hoje ao contrário do que se passou, foi dia de despedida. Trocamos beijos e promessas sonolentas. Tenho um misto de emoções concentrado no estômago: a alegria juntou-se ao medo e o medo ao arrependimento. Fui eu quem tinha jogado a ideia ao ar de que precisávamos nos mudar, que afinal de contas de que vale ter um salário como empregado se o dinheiro desse apenas para pagar as contas e pouco mais? É preciso arriscar e toda escolha nos cobra um preço...
Nosso amor já nasceu da distância, creio que às vezes é dela que se alimenta, voltando sempre mais forte a cada mergulho nos braços do outro. E sempre achamos que esta será a última vez, o último beijo de despedida, a última saga de conversas no skype, a última vez que tenho de responder zilhões de vezes ao Fabian que o papai vai demorar e que na verdade eu não sei até quando.
Depois de quase dez horas em tgv, o marido chegará em Nice, dormirá em um quarto de hotel e depois em um quarto alugado tal como fizera quando chegou na França. A diferença é que enquanto passa pela provação dos três meses de experiência, estamos na nossa casa, o Fabian na mesma rotina escolar, com a dispensa abastecida e com dinheiro, graças ao destino (ou a nós) bem melhor do que aconteceu no Brasil. E a mim resta esperar e imaginar, tal qual a fatídica cena do Mr. Bean quando encontra o mar da Cotê d'Azur, a vida a imitar a arte.


ps: prometo ter cuidado ao atravessar a rua!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Rotina

Não pôde evitar olhar no espelho o seu rosto cansado no instante que durou o viajar da porta do armário do banheiro. Ele voltou a fechá-lo depois de espremer a pasta de dentes e da segunda vez ela preferiu olhar para o sinal que o marido tinha em cima do ombro, talvez a primeira coisa que reparara quando fizeram sexo anos atrás. Sentia a pele dos seios encostada às costelas, levemente caídos no grau de quem tinha amamentado dois filhos com pouca diferença de idade. Queria dizer-lhe e agora: o que fariam depois de tudo? Depois do mais novo retornar para a casa que dividia com a namorada? Não haviam afinal dito um ao outro que estavam juntos pelas crianças? E agora que já não há mais crianças senão aquelas presas sob os retratos envelhecidos da estante? 
Agarrou o pente e quedou-se a domar os cabelos pintados de loiro para disfarçar os brancos que surgiam cada dia um pouco mais. Os anos foram duros para ela, os anos e o mundo. O peso que caía sobre suas costas, a que ela ajeitava como quem arruma a alça de uma mochila pesada, agora cobrava-lhe implacável. As rugas espalhadas pelos cantos dos olhos, ao redor da boca...rastros das lágrimas e dos sorrisos que abandonara. Olhava para ele retirando as sobrancelhas brancas que manchavam a moldura espessa de seus olhos castanhos. Marcos sempre fora vaidoso, antes fazia a barba todos os dias, agora, faz barba, sobrancelhas, nariz e orelhas. A idade tem destas, começa a faltar cabelo onde tinha de ter e sobrar nos mais variados lugares. 
"Onde foi que nos perdemos?" Ele parou como se tivesse escutado o seu pensamento, mas foi apenas o tempo de mudar de mão a pinça e recomeçar o trabalho paciente que roubava-lhe mais de meia hora. Sabia que ele deitara em outras camas, que além de tudo, o emprego deu-lhe desculpas demais para tal. Mas sabia que agora isto não fazia a menor diferença, que já não sentia mais aquele ardor de mulher traída, nem mesmo o despeito por si mesma, visto que o ciúme daqueles centímetros de carne desapareceu tão logo desapareceram os seus orgasmos. E agora sabia mesmo sem querer, que as constantes idas ao celular, os assovios por nada, a benevolência em sua voz, eram indicativos claros  de que andava entre coxas tenras e jovens novamente. 
Houve tempos em que pensou em arrumar um amante também, mas suas tentativas foram tão desastradas ( o suposto "sarado do 69" era um antigo aluno seu) que desde então ela deixou-se de chats de encontros.  Ele tinha-na avisado que hoje não era para esperá-lo para o jantar, ela nada disse enquanto passava o rímel seguido do batom cor de cereja. Quando as horas passaram e o dia se fez noite, desistiu da lasanha que já esfriava no forno, foi até o congelador e pegou o pote de sorvete. Sentou-se a olhar para as luzes da cidade que acordava, pequenas estrelas cintilando  no asfalto. Enchia a colher e esperava o gelo derreter-se na boca, com a felicidade que a vida lhe dera de comer doces e nunca engordar. Não sabia quando o marido ia lhe responder a pergunta ou se ela de fato a faria. Porque já estavam tão acostumados com o passado, mais que acostumados, fascinados com as ruínas que construíram, que nenhum deles tinha vontade de virar-lhes as costas. Deitou-se depois de vestir a camisola de cetim e sentir os bicos dos seios saltados no tecido. Mas só conseguiu finalmente adormecer quando Marcos deitou-se ao seu lado e apagou a luz.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Mundança

Não existe, mas devia. Mundança seria na definição do meu dicionário particular, a abundância de mundo, ou a dança de um mundo dentro de nós, que se sacode em rotação separando as coisas que já foram e criando espaço para que outras possam ser. 
Queria ser uma pessoa daquelas fáceis de levar, uma que aceita tudo, cujo refrão é um eterno Carpe diem...Ao invés disto, me agarro ao desespero como se ele fosse realmente a única saída, dou golpes no ar e mesmo, mesmo quando a "mundança" é para melhor, abraço os joelhos tentando me proteger das minhas falsas expectativas. 
Sinto-me como um aluno repetente a ver as mesmas lições no quadro, a preparar-me ansiosa para a prova, sempre as mesmas perguntas, já com as respostas decoradas em verso, vejo-me a rodar...a cair...pequena... Engulo o medo na tentativa de que assim ele não possa me engolir. Traço dietas, faço planos e espero com a ansiedade de quem quer atropelar a vida. Na verdade, o que eu queria era que as coisas permanecessem quietas e que o chão parasse de girar sob os meus pés.

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Que mulher, que coragem!

Queria eu ter a coragem desta mulher e admitir o que sinto, abandonando de vez aqueles sorrisos tortos e os pensamentos contraditórios que me roubam a franqueza. Depois que li a reportagem desta mãe com sentimentos tão análogos aos meus, pensei ter encontrado minha alma gêmea da maternidade e garanto que esta é muito mais difícil de achar do que a vulgar da música que segue com duas metades da laranja, dois amantes, dois irmãos.
Ainda é tarefa hercúlea desvincular a maternidade de uma imagem única, a do altar de sacrifício, ao estático e inquestionável amor materno, amor incondicional. Eu realmente acredito que existe, mas acho redutor afirmar que só as mães possuem acesso a este bem precioso que um Deus  reservou apenas à metade da humanidade.
Acho incrível como ainda se julga em dois pesos duas medidas a atitude de uma mulher que não quer ter filho, ou pior de uma que tem mas que não se sente abençoada com este papel, enquanto o homem tem sempre qualquer coisa que desculpe sua opção, abandono ou omissão. O lugar de um filho é com a mãe, os bois mugem. Será que é? Será que a vida é assim o preto no branco? 
Nunca me disseram que se arrependeram de serem mães, e no entanto há aí aos montes, quase trezentos comentários no blog. Todos os dias chegam com a mesma pergunta ardendo no peito. Serei a única a sentir isto? Imagino-as a digitarem a frase com culpa solitária, os dedos carregados de raiva, medo e muitas vezes, lágrimas.   Umas chegam, leem silenciosamente e vão embora. Outras voltam, partilham suas histórias tão diferentes, mas ao mesmo tempo tão semelhantes. Outras vem todos os dias. Vivemos nas sombras, e eu queria ter a coragem desta mulher, mas não tenho. Até quando vamos alimentar esta falácia de que a mulher nasceu para ser mãe? Que a mulher só é completa se for mãe? Que só se descobre o que é mesmo amar quando se é mãe? De fato admito que há aquelas em que o papel serviu perfeitamente, mas e as outras? E se as outras forem a maioria? 


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