quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Entre a cruz e a espada

É assim cada vez que eu tento falar sobre os muçulmanos aqui da França. Mais do que ninguém (ou pelo menos do que meus colegas historiadores ratos de biblioteca) sei o que é sentir-me cuturalmente indesejada. Não vou falar sobre a complexidade e a não tão óbvia linha que separa nacionalidade, cultura e religião, no entanto é bom fazer uma ressalva que para a maioria das pessoas isto dá no mesmo: são árabes e pronto. Dizia eu que sei como é sentir-se rechaçado, ouvir comentários, aguentar olhares, gracejos e preconceito sobre a minha "brasilidade" como se esta fosse um defeito de caráter. Não há o que se discutir quanto a isto, a xenofobia é uma realidade dura e persistente na vida de um emigrante. É uma ferida invisível, mas que sangra cada vez que é cutucada e o é em grande parte das vezes, que para não enlouquecer obriguei-me a fingir. Tornei-me dura, é verdade, mais inflexível do que já era. Às vezes tenho um filtro que só deixo cair perante conversas com o meu marido, e com ele troçamos dos outros tanto quanto o fizeram conosco. É uma reação pobre e fútil, talvez infantil, mas acima de tudo inofensiva (não lembro de ninguém  morrer por minha causa). Enfim, entendo muito bem o lado dos muçulmanos.
 Um episódio caricato aconteceu uma semana atrás quando um homem veio ver o apartamento para alugar, e que por acaso, foi o único que falou pois o resto da família não compreendia francês. O cara foi extremamente estúpido comigo, minha vontade inicial foi bater-lhes com a porta na cara, mas suspirei, e no fundo vi a mim mesma anos atrás...era como se a qualquer momento esperasse ser agredida. Eu me encolhi, ele resolveu gritar mais alto do que qualquer um que lhe falasse.
Sobre este atentado, já se sabe que as reações cairão sobre todos eles, radicais ou não. E é isto que me assusta, no primeiro momento dar por mim a odiar pessoas que nem conheço, com a visão atordoada pela covardia. Percebi que é fácil, muito fácil despencar pela raiva. Há muitas coisas que não gosto particularmente na religião que seguem, uma delas me dá um nó e inclusive ouvi de feministas sobre as mulheres "gostarem" de usar véu. É um assunto que fica para a próxima. 
A liberdade de expressão tão acarinhada pelos franceses, foi a vítima deste sistema de frágil convivência. Vocês fingem que se adaptam, nós fingimos que os toleramos. De um lado o humor mordaz e crítico ao qual não escapa nem o papa, nem a Le Pen,  e do outro, a lança fundamentalista de uma religião que lembra a igreja católica da Idade Média. Tão anacrônico quanto um dinossauro a pisotear prédios como se fossem de papel, é a idéia de que há liberdade, fraternidade e igualdade por estes lados.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Stand by

Falta quase uma semana para a mudança e eu ainda não fiz nada. A casa está como se nada fosse acontecer, como se eu simplesmente a fechasse para ir no mercado e voltasse meia hora depois. Mas sei que é apenas questão de tempo para chaveá-la ao meu passado, mais um lugar que já foi nosso e que não podemos voltar. Às paredes tortas, às janelas tortas erguidas algures em 1700, que em breve vão despedir-se de mais um punhado de almas que gestou. Penso se a casa tem memória e se as vive com tanta intensidade como costumo visitar a um mundo que se desvaneceu. Vive e será que recolhe um pouco de nós para sua existência  de barro e toras velhas? Um poeta da minha terra costumava dizer: eles passarão, eu passarinho. Pessoas passam, deixam suas marcas em furos jamais tapados, em bordas ou chão manchado. A casa fica. Parece a própria face da eternidade. Nunca consigo imaginar um edifício em seu lugar, muito menos uma daquelas caixas de vidro que infelizmente se tornaram o "must do" dos engenheiros moderninhos.
Ela parece troçar dos meus receios de que rua quando a abandonarmos. Mas ela é forte, teve de ser. Conserto feridas com um pouco de corretivo. Salpico-a de um branco mais branco do que o papel de parede. Ela sabe que é difícil para mim, terei de domar meus impulsos obsessivos e que aqui estavam finalmente  adormecidos. Já lhe disse que lá onde vou morar o chão é de lajota enviesada? E do quanto vai me custar olhar para baixo e não me dar faniquitos ao pensar quem é que teve a ideia de estragar um apartamento tão bonito? Lajotas enviesadas. Por tudo. Como se fossem a roupa de um arlequim.
Falta quase uma semana para a mudança e eu ainda não fiz nada. Mas de repente parece que fiz muita coisa.
Arlequim chora a cada vez que resolvem assentar lajotas enviesadas ao invés de piso de gente normal.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Réu confesso

Se eu pudesse dedicar uma música para o meu ano de 2014, começaria assim (voz da Alcione por favor): venho lhe dizer se algo andou errado, eu fui o culpado, rogo o seu perdão... Nada de mandinga, de culpar os astros ou os outros, fui eu mesma que fodi tudo. Mas ao mesmo tempo, também fui eu que mal ou bem me aguentei, não desisti e não deixei que o Fernando desistisse. Este ano vou entrar de vermelho e roxo, não faço qualquer idéia do que as cores signifiquem, afinal são as cores do meu pijama. Hoje não vamos ter ceia. Brinquei com o marido que ao invés disto vamos ter seio hahaha! Ele vai conseguir chegar pelas dez e meia da noite ( se encontrar algum taxista perdido pela Gare) e como não temos o costume de jantar tarde, resolvi que vou mais é fazer um almoço gostoso no dia primeiro.  
Tá, para não perder a vinda para tirar o pó do blog, aqui vai uma mais ou menos auto-reflexão. Vejo tanta gente dizendo há tempos que o ano seja bom, seja feliz, que nós consigamos realizar todos os nossos desejos, enfim, todas estas frases 'cartão-de-Boas-Festas' que se possa imaginar. Eu mesma já disse a algumas pessoas as mesmas palavras vazias, mas para dizer nem que seja uma vez a verdade, eu não desejo que se realizem e que tenham todos seus pedidos satisfeitos. Não. A vida não é um gênio da lâmpada ambulante que vive apenas para nos fazer feliz. Desejo (a mim e aos outros) que tenham pedras no caminho (muitas), que tenham sorrisos sim, mas lágrimas de alegria e de saudade para que possam temperar suas lembranças de agridoce... Desejo que haja problemas, pessoas chatas misturadas com as poucas e boas amizades. Desejo ingratidão, assim como abraços apertados de despedida. Desejo que sejam infelizes alguns dias, com umas gripes no inverno. Afinal ninguém cresce sentado de pernas cruzadas no Himalaia. Nem gastando os pés no caminho de Compostela. Crescemos com as dificuldades da vida, com a frustração de quase sempre darmos com os burros n'água, crescemos com a dor, com o não. Este ano que se inicia será como qualquer outro que já passou, e tal como os outros, desejo que seja mais uma vez, esta montanha russa de acontecimentos e que ao fim de várias voltas tenha valido a pena pagar o bilhete.

Obrigada. De nada

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