sábado, 24 de janeiro de 2015

Madame Garcia

Minha homônima começou a tarde carregando o dedo com vontade na campainha. Gente, não sei de onde saiu esta história de que os franceses são educados: batem a porta dos carros como se fossem de pedra, se meu padrasto tivesse aqui já saía com um "não tem porta em casa???"; e enterram o dedo na campainha como se estivessem levando uma descarga elétrica, incapazes de afastá-los.
Foi a primeira vez que eu vi a madame Garcia. O marido já tinha conversado com ela, foi quem afinal lhe mostrara o apartamento, visto que o dono mora a quilômetros daqui. Ele disse ser uma velhota simpática, e eu já a havia imaginado em pantufas cor de rosa, dentro de um espesso roupão florido, cabelo branco e crespo, em uma aura de perfume doce, tão doce que chegava a doer o nariz. Eis que quando vi a verdadeira, aborreci-me. É uma velha perua ou uma perua velha. Tacão alto, pernas longas e magras como um flamingo, cabelos pintados de loiro mel. Desatou a entrar no apartamento, sem nenhuma cerimônia foi dizendo que deveríamos ter limpo o elevador no dia da mudança, coisa que tinha avisado ao Fernando e que depois ele esquecera. Ela, toda trabalhada no salto agulha limpou para nós, o que me deixou borrando de vergonha e raiva por sequer ter sabido do ocorrido. A madame, que é a síndica do prédio, veio dar o ar da graça também para dizer que os vizinhos de cima tinham reclamado do barulho do Fabian. Diz que ele corre muito. Ora, achava eu que o barulho não incomodava, visto aqui embaixo ser o estacionamento e se houvesse quem o ouvisse, seria o vizinho do lado. Prometi conter ele pela manhã enquanto ainda é horário de silêncio, e assim tenho feito. Acontece que durante o resto do dia (quando ele vem almoçar ou quando volta da escola) tem sido enervante estar sempre a lhe dizer para ter cuidado com os pés. Os vizinhos de cima já se manifestaram tirando o feltro dos móveis (obrigatório aqui) e andando de salto (proibido). Acho engraçado quando adultos querem ser mais infantis do que as próprias crianças! Se eu tivesse a desenvoltura do Fernando, já tinha ido bater à porta explicar o óbvio: eu não posso atar uma criança à cadeira, nem forrar a casa, nem enfaixar-lhe os pés. Na outra casa, convivi com duas crianças em cima de mim, as duas menores que o meu filho, fazendo tanto ou mais barulho do que ele. São coisas da vida, há que aceitar. Não me incomodo com barulho de criança, incomoda-me muito mais os adultos que agem assim como se fossem os únicos no mundo. Desta vez a madame Garcia não ouviu, mas ouvirá, porque a madame Garcia aqui já não engole mais sapos, nem escargots nem coquilles de Saint Jacques. Se as pessoas aqui não se coíbem em ser mal educadas por que eu iria?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Caí no conto da maternidade

Oh estou tão feliz que tu vais ser mãe amiga, vais ver que agora a vida vai ter outro sentido... Ah são gêmeos? Ô coisa boa, alegria em dobro! Não tô chorando de tristeza não...é só de alegria, só de alegria...ah como é bommm ser mãe!


Em um post que escrevi já faz algum tempo, volta e meia alguém me pergunta sobre como me sinto hoje sobre não gostar de ser mãe. Quando escrevi aquilo o Fabian tinha dois anos, era um menino extremamente agitado em uma simples extensão do bebê exigente que fôra. Eu não sei o que veio primeiro: se o sentimento de não me sentir arrebatada pela experiência de um amor sobrenatural ou a minha própria vivência desprovida de momentos de comercial do dia das mães. 
Neste tempo, o Fabian cresceu, eu mudei, mas o que sinto pouco se alterou. Há dias em que consigo lidar relativamente bem e há dias em que sinto-me em uma prisão perpétua de culpa e desespero, como se estivesse arranhando paredes e maquinando um plano de fuga já por si mesmo fadado ao fracasso. 
É verdade que escolhemos de certa forma a nossa vida, eu escolhi ser mãe. Mas escolhi baseado em um conto, em uma verdade absoluta sustentada por quem já o era. Ninguém me disse que podia ser diferente, que não há uma receita de bolo para o amor. Ainda hoje me surpreende frases de efeito como "ser mãe é viver com o coração fora do corpo". É mesmo? E "eles viram nossa vida de cabeça para baixo, nos fazem perder o sono, a paciência, o dinheiro, mas no fundo vale tudo a pena". Ah é? Eu nunca deixo de pensar se estão mesmo em perfeita sanidade, se não sofrem de síndrome de Estocolmo, segundo a qual os reféns apaixonam-se ou criam afeição pelos seus algozes. 
Há um "eu" e as outras, uma forma dicotômica do mundo da maternidade. Ou é ou não é. Afinal que espécie de mãe não sente que o seu filho é mais importante que ela? Que merece todo o sacrifício que puder lhe ofertar, o que muitas vezes significa abdicar de sua própria felicidade? Neste mundo não há boas e más mães, há tão e somente o papel principal de mãe. E ser mãe é ser assim, dona de um amor incondicional incontestável. Que sei eu, vou ser julgada no tribunal das mães, vou arder no inferno das mães...mas...mas...já não disseram elas que ser mãe era padecer no paraíso? E se este é o paraíso, será então o inferno aquele lugar onde criança não entra? Onde podemos ver novela, comer comida quente e transar sem sermos interrompidos? Será o inferno das mães aquele lugar onde não podem ou não precisam mostrar para o mundo que só elas é que sabem do verdadeiro amor?
Uma voz quase sumida me sussurra quando alguém diz que está grávida: digo parabéns ou boa sorte? Há situações Em que o melhor é não dizer nada, mas hoje não fujo mais. Tento viver com este erro da melhor forma que conseguir, deixo para as outras toda a razão que quiserem, já sei que estou condenada a arder no inferno materno junto com a minha coca cola zero e o coração que nunca viveu fora do meu corpo.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Trocamos corvos por gaivotas

Não, eu não morri. Mas quase. Engraçado por que mudei-me tantas vezes num espaço de três anos que achava que já tinha prática nisto...parece que me enganei. Esta foi a primeira mudança de "mala e cuia" como dizemos na minha terra. Nas outras levamos malas, na de Portugal para o Brasil, algumas caixas, mas o grosso mesmo encontrou o seu destino: vendido ou dado. 
A novela começou na terça quando fomos "avisados" de que a mudança não poderia ocorrer no outro dia pela manhã, visto o caminhão ter se estragado. Ficou combinado então para o mesmo dia às quatro da tarde. Ora, um caminhão vindo dos arredores de Paris, podía-se com certeza contar com algum atraso, o que de fato aconteceu, só não esperávamos que fosse tanto! O rapaz telefonou às onze da manhã dizendo que estava saindo (não mentiu, podia estar saindo do banho), e foi dar com os costados em Schiltigheim às 9 e 20 da noite. Pois, uma viagem que se faz no máximo em seis horas... Nesta altura o marido já estava espumando e eu também havia perdido toda a calma. Que horas iríamos sair, sabendo que nos esperavam  900 km pela frente e que no outro dia tínhamos de estar lá para receber as coisas, assim como tínhamos documentos para resolver da inscrição para a escola do Fabian? 
Os dois rapazes que chegaram não tiveram boa vontade ou neurônios para jogar o tétris a fim de que cada móvel, sacola, ou mala achasse o seu lugar naqueles 17 metros cúbicos. Então ficaram pecando pela burrice, iam e voltavam. Tiravam e tornavam a colocar e nesta dança, quem dançou foi o colchão de casal, assim como duas cadeiras. A brincadeira terminou à uma da madrugada, quando percebemos que se não ficassem estas coisas íamos noite a dentro nisto. O Fabian capotara para o lado ressonando atrás de mim no carro, assim, foi o marido que vistoriou tudo, depositou a chave na correspondência e não olhou para trás. 
A estrada era um traço infinito que escondia-se na escuridão. À nossa frente apenas os dois faróis nos guiavam para casa. Paramos duas ou três vezes para o Fernando tomar café e mesmo eu coruja assumida, tive uma hora em que não havia jeito de permanecer com os olhos abertos. Combinamos que no próximo posto descansaríamos quarenta minutos: acordamos com a ligação da minha mãe duas horas depois. Trintei, to ficando velhota! Mas ainda não tive tempo para panicar.  De volta à estrada, paramos só ao chegar no prédio.
Primeiras considerações: vi mais sol aqui nestes dias do que em um mês na Alsácia. Para mim inverno podia ser isto, um casaco leve e nada mais. Devo ter ficado casca grossa, estou sempre achando que está quente e acho o povo muito exagerado ao se agasalhar. 
Caminhar e sentir o ar da maresia, se espantar como uma criança a cada vez que o sol estende seu manto dourado pela sala, ver as palmeiras como se de um país tropical se tratasse, me faz lembrar de tudo o que passamos para estar hoje aqui. Se alguém me dissesse lá atrás , quando o Fernando ficou desempregado que no fim das contas iríamos morar neste lugar, nestas condições financeiras, eu teria dito "só  se for agora, bora  começar a aventura". Ou via Crucis, vá lá...

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Ai ai ai ai...tá chegando a hora

E eu aqui com uma dor de cabeça infernal... Enquanto aguardo a hora de buscar o Fabian na escola, dou uma última passada de olhos pela casa. Hoje virão duas famílias para conhecer o apartamento: um casal com um filho e uma mulher solteira  com duas crianças. Ainda tenho marcado também um rapaz que quer comprar o vidro de proteção para o iPad anunciado há mais de mês e que comprei errado. 
Depois do marido quase me enlouquecer com a paranóia de que a empresa de mudança podia ser fria, eis que está tudo certo. Afinal não atendiam o telefone porque resolveram tirar férias no natal. De noite chega o marido devidamente motorizado, amanhã passamos no Ikea e Leroy Merlin para comprar as caixas e alguns móveis que nos fizeram falta um ano e meio. E decorações, o que der para comprar. Nem acredito que vou finalmente ter um lustre na sala. Eu acho que estou me portando tão bem...passei este tempo todo olhando para um buraco no teto sem me incomodar (tanto). Vá me chama de neurótica marido, que eu acho que sou das poucas que ia aguentar isto!
Enfim, encaixotar nossa vida de novo e pé na estrada. Nove horas de viagem, mais de 900 quilômetros de "já chegamos?", "quando é que nós chegamos?", "deu agora?", mas no fim quando olhar depois da curva da estrada que vai a Nice e ver o mar, as luzes pequeninas como se fossem vagalumes coxilando , vou ser feliz. Tenho certeza de que vou ser muito feliz.
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