domingo, 25 de janeiro de 2015

O mau humor da fome

Tinha uma amiga de faculdade que me diagnosticou assim. Quando se aproximava das onze e meia, o professor não calava a boca, se avistava sempre os mesmos nerds a fazerem perguntas às quais conheciam as respostas, eu bufava. Botava uma nádega a cada vez na cadeira desconfortável de madeira. Ela me olhava de soslaio, quieta. Sabia que era a pior hora para falar comigo. Era o mau humor da fome tomando conta de mim. Depois daquela sombra ou do buraco negro que se espalhava no meu estômago comendo cada pedacinho de pensamentos bons que pudesse ter, a vida era escura, um breu. Quase podia ouvir os titãs cantando "você tem fome de quê, você tem sede de quê?". Na fila sem fim do R.U. (restaurante universitário) ouvia-me resmungar com o grupo de hippies atrás de nós, ou dos textos que tivemos de ler ou do cardápio que teria naquele dia. Mas ela sabia que tudo aquilo não era eu, era a fome falando, o buraco negro dentro de mim. Bastava que se enchesse com arroz grudado, feijão sem sal e carne cheia de nervos para voltar a ter a amiga tranquila de sempre.
Eu e meu estômago temos uma relação assim, bipolar: ora ele me faz a mais feliz das criaturas, ora ele me transforma na mais miserável . Detesto fazê-lo passar fome e é por isto que para mim dieta é das piores coisas que me podem fazer passar. Eu sei que dizem que não se passa fome, que é só comer de três em três horas, mas pouquinho, comidinha leve, sem sal nem açúcar. Nã! Comida em doses homeopáticas é um hiato emocional, e o que não enche barriga não melhora a paciência. Eu sei que eu e ele precisamos discutir a relação, o verão está quase aí e vem pelo correio uns biquínis do Brasil...mas começar outra vez a controlar a alimentação já me deixa de mau humor. Ainda bem que a minha amiga está bem longe (para o bem de nossa amizade).

sábado, 24 de janeiro de 2015

Um pedaço do paraíso plantado na cotê d'azur

Madame Garcia

Minha homônima começou a tarde carregando o dedo com vontade na campainha. Gente, não sei de onde saiu esta história de que os franceses são educados: batem a porta dos carros como se fossem de pedra, se meu padrasto tivesse aqui já saía com um "não tem porta em casa???"; e enterram o dedo na campainha como se estivessem levando uma descarga elétrica, incapazes de afastá-los.
Foi a primeira vez que eu vi a madame Garcia. O marido já tinha conversado com ela, foi quem afinal lhe mostrara o apartamento, visto que o dono mora a quilômetros daqui. Ele disse ser uma velhota simpática, e eu já a havia imaginado em pantufas cor de rosa, dentro de um espesso roupão florido, cabelo branco e crespo, em uma aura de perfume doce, tão doce que chegava a doer o nariz. Eis que quando vi a verdadeira, aborreci-me. É uma velha perua ou uma perua velha. Tacão alto, pernas longas e magras como um flamingo, cabelos pintados de loiro mel. Desatou a entrar no apartamento, sem nenhuma cerimônia foi dizendo que deveríamos ter limpo o elevador no dia da mudança, coisa que tinha avisado ao Fernando e que depois ele esquecera. Ela, toda trabalhada no salto agulha limpou para nós, o que me deixou borrando de vergonha e raiva por sequer ter sabido do ocorrido. A madame, que é a síndica do prédio, veio dar o ar da graça também para dizer que os vizinhos de cima tinham reclamado do barulho do Fabian. Diz que ele corre muito. Ora, achava eu que o barulho não incomodava, visto aqui embaixo ser o estacionamento e se houvesse quem o ouvisse, seria o vizinho do lado. Prometi conter ele pela manhã enquanto ainda é horário de silêncio, e assim tenho feito. Acontece que durante o resto do dia (quando ele vem almoçar ou quando volta da escola) tem sido enervante estar sempre a lhe dizer para ter cuidado com os pés. Os vizinhos de cima já se manifestaram tirando o feltro dos móveis (obrigatório aqui) e andando de salto (proibido). Acho engraçado quando adultos querem ser mais infantis do que as próprias crianças! Se eu tivesse a desenvoltura do Fernando, já tinha ido bater à porta explicar o óbvio: eu não posso atar uma criança à cadeira, nem forrar a casa, nem enfaixar-lhe os pés. Na outra casa, convivi com duas crianças em cima de mim, as duas menores que o meu filho, fazendo tanto ou mais barulho do que ele. São coisas da vida, há que aceitar. Não me incomodo com barulho de criança, incomoda-me muito mais os adultos que agem assim como se fossem os únicos no mundo. Desta vez a madame Garcia não ouviu, mas ouvirá, porque a madame Garcia aqui já não engole mais sapos, nem escargots nem coquilles de Saint Jacques. Se as pessoas aqui não se coíbem em ser mal educadas por que eu iria?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Caí no conto da maternidade

Oh estou tão feliz que tu vais ser mãe amiga, vais ver que agora a vida vai ter outro sentido... Ah são gêmeos? Ô coisa boa, alegria em dobro! Não tô chorando de tristeza não...é só de alegria, só de alegria...ah como é bommm ser mãe!


Em um post que escrevi já faz algum tempo, volta e meia alguém me pergunta sobre como me sinto hoje sobre não gostar de ser mãe. Quando escrevi aquilo o Fabian tinha dois anos, era um menino extremamente agitado em uma simples extensão do bebê exigente que fôra. Eu não sei o que veio primeiro: se o sentimento de não me sentir arrebatada pela experiência de um amor sobrenatural ou a minha própria vivência desprovida de momentos de comercial do dia das mães. 
Neste tempo, o Fabian cresceu, eu mudei, mas o que sinto pouco se alterou. Há dias em que consigo lidar relativamente bem e há dias em que sinto-me em uma prisão perpétua de culpa e desespero, como se estivesse arranhando paredes e maquinando um plano de fuga já por si mesmo fadado ao fracasso. 
É verdade que escolhemos de certa forma a nossa vida, eu escolhi ser mãe. Mas escolhi baseado em um conto, em uma verdade absoluta sustentada por quem já o era. Ninguém me disse que podia ser diferente, que não há uma receita de bolo para o amor. Ainda hoje me surpreende frases de efeito como "ser mãe é viver com o coração fora do corpo". É mesmo? E "eles viram nossa vida de cabeça para baixo, nos fazem perder o sono, a paciência, o dinheiro, mas no fundo vale tudo a pena". Ah é? Eu nunca deixo de pensar se estão mesmo em perfeita sanidade, se não sofrem de síndrome de Estocolmo, segundo a qual os reféns apaixonam-se ou criam afeição pelos seus algozes. 
Há um "eu" e as outras, uma forma dicotômica do mundo da maternidade. Ou é ou não é. Afinal que espécie de mãe não sente que o seu filho é mais importante que ela? Que merece todo o sacrifício que puder lhe ofertar, o que muitas vezes significa abdicar de sua própria felicidade? Neste mundo não há boas e más mães, há tão e somente o papel principal de mãe. E ser mãe é ser assim, dona de um amor incondicional incontestável. Que sei eu, vou ser julgada no tribunal das mães, vou arder no inferno das mães...mas...mas...já não disseram elas que ser mãe era padecer no paraíso? E se este é o paraíso, será então o inferno aquele lugar onde criança não entra? Onde podemos ver novela, comer comida quente e transar sem sermos interrompidos? Será o inferno das mães aquele lugar onde não podem ou não precisam mostrar para o mundo que só elas é que sabem do verdadeiro amor?
Uma voz quase sumida me sussurra quando alguém diz que está grávida: digo parabéns ou boa sorte? Há situações Em que o melhor é não dizer nada, mas hoje não fujo mais. Tento viver com este erro da melhor forma que conseguir, deixo para as outras toda a razão que quiserem, já sei que estou condenada a arder no inferno materno junto com a minha coca cola zero e o coração que nunca viveu fora do meu corpo.
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