A Odisseia foi silenciosa. Marido recebeu um salário de apenas doze dias, ficamos dois meses sem seguro desemprego, o dono do apartamento ligava fazendo ameaças de despejo. Um dinheiro inesperado veio (participação nos lucros da primeira empresa que eles não queriam pagar), o que juntando com o pouco que tínhamos economizado, permitiu que pagássemos o aluguel e as contas. Neste tempo, idas e vindas à Caf (orgão de ajuda do governo), ao centro de emprego, à assistente social sem resultados rápidos. Chegou uma hora em que o desespero bateu. Sem dinheiro no banco e à mercê da burocracia, nos vimos sem chão. A raiva, a revolta ressurgiam como ondas gordas, gigantes e me arrastavam com sua (minha) fúria. Foram dias difíceis que guardei em silêncio. Quando falava com a família estava tudo bem, sempre está tudo bem aqui "nas Europa". Minha vó marcou um vôo para passar o aniversário do Fabian e ela ainda não sabe de nada (alem da minha mãe, apenas minha madrinha e padrinho estão mais ou menos por dentro da situação).
Mas como alguém passaria fome no país do bem estar social? Não haveria alguma ajuda de urgência que não dependesse de meses e meses de masturbação burocrática? Foi então que recebemos a primeira ajuda: um cheque de 80 euros que o marido foi levantar nas Finanças. Foi a primeira vez que saiu de lá feliz!
Esta semana finalmente conseguiu, ao invés de ser "encaixado", horário com a assistente social e foi encaminhado ao restaurante do Concelho do Var. Foi no mesmo dia fazer a inscrição e hoje à tade foi buscar a cesta básica. Meus olhos se encheram de lágrimas quando trouxe a mala de rodinhas, o carrinho de feira, a mochila e uma sacola reutilizável cheias de comida. Deve ter sido da TPM ou talvez não. Na verdade nunca dependemos de ajuda nenhuma, nem nunca estivemos em uma situação tão difícil. Imaginava alguns sacos de arroz e massa, duas ou três latas de ervilha e milho e pouco mais, que seriam muito bem-vindos. Veio 6 tipos de queijo, carne e pizzas congeladas, chocolate em pó, frutas, verduras, pães, bolachas, sucrilhos, mini salgadinhos e umas besteirinhas para o Fabian, um, como costumamos dizer no Sul do Brasil, rancho completo que nunca fizemos mesmo o marido estando empregado.
Quando dizem-nos que não podemos falar ou defender as políticas ditas populistas no Brasil por morarmos aqui, minha vontade é literalmente mandá-los à merda. Não precisei estar passando por isto para ver o quanto é importante ter um Estado que não permita que passemos fome. Embora reconheça que no Brasil estas ações ainda são deficitárias tendo em conta a quantidade de pobreza, tudo que se faça para diminuir o abismo social é valido. "Ah tem que se ensinar a pescar". Não, foda-se, tem que dar a porra do peixe duma vez! Quem diz que deve-se apenas dar o caniço, nunca passou fome, como eu ainda bem não precisei ver meu filho passar. Se focarmos na quantidade de gente que burla o sistema ou se acomoda, não se faz nada para melhorar a qualidade de vida do povo.
Dois anos na França e é a primeira vez que recorremos ao sistema de apoio social. Não queremos viver eternamente assim, aliás não sei quem em sã auto-estima quer viver sem ter grana para nada. Mas por enquanto sabemos que temos a geladeira abastecida ate o final do mês.
* Ah, um fato engraçado: quando o marido chegou com aquela quantidade de comida em casa, o Fabian enlouqueceu. Arregalava os olhos cada vez que esbarrava em um doce ou bolo. Depois disse que tínhamos que agradecer ao Papai Noel por tanta coisa que ele nos deu. Nos olhamos e o marido disse: viu como valeu a pena se comportar?
O Fabian com a boca cheia de uma bala Carambar que veio no rancho, fazia que sim com a cabeça.
*ps2: Quem disse isto da última vez foi uma perua de meia idade, divorciada, três filhos, cujo ex marido é dono de uma das imobiliárias mais ricas da cidade. Deu vontade de lhe responder para que ela desse o exemplo, parasse de viver de pensão e fosse pescar. Mas minha politesse já anda no mínimo, então deixei quieto.