quinta-feira, 21 de maio de 2015

Blue eyes



Há certas profissões que qualquer decisão pessoal mal tomada pode resultar em uma grande merda para os outros. O primeiro pensamento geralmente foge para os médicos, enfermeiros, socorristas. Ninguém pensa em um simples funcionário administrativo cujo serviço seja apenas apertar com força um carimbo. Talvez seja porque a morte é por demais definitiva que erros banais que podem mudar vidas, adquiram contornos de "ups, foi mal aí", quase como se fosse alguma desculpa cármica para as coisas terem corrido assim. 
Geralmente não vejo filmes brasileiros pelo hábito simples e idiota de estar acostumada a ler legendas. Embora tenhamos filmes muito bons, também já me cansa ver coisas só relacionadas ao triângulo amoroso Rio-tráfico-violência como se não fôssemos nada mais do que isto, como se a calçada de Ipanema se estendesse até o litoral gaúcho e que Tom Jobim fatalmente caísse de amores por uma loira ao invés de uma cabocla vinda de Guarani das Missões. Já que todo mundo sabe que a única beleza cheia de graça só é produzida na zona sul e ela tem os cabelos dourados e o corpo esguio...
Blue Eyes é um filme brasileiro que é 90% falado em inglês, pois conta o episódio de um agente de imigração que resolveu tomar um porre no último dia antes de se aposentar. Ele e uma colega resolvem brincar com uma dezena de imigrantes que aguardam autorização para entrar nos EUA. Entre eles, uma cubana, um casal de argentinos, um grupo de atletas colombianos e o brasileiro "Nonato". Tirando a licença poética, é um retrato puro e duro do que acontece nos bastidores da imigração. Racismo, xenofobia, abuso de poder: todos estes bichos loucos e raivosos soltos, com a ressalva deste histerismo estar dentro da lei. 
Blue Eyes conta com apenas um ator conhecido: Frank Grillo, mas isto para mim é até um ponto a mais. Gostei principalmente quando começa a se questionar sobre quem é mais americano ali, o chefe loiro e de olhos azuis, a colega negra e o "latino" nascido de pai mexicano e ilegal. Porque sem dúvida que há sempre uns que são filhos e outros enteados de uma nação "de todos".

Amigas

Chegou atrasada como sempre. Desde que se casara com aquele dentista da zona sul que a amiga andava mudada, não  havia dúvidas  de que o novo status lhe subiu à cabeça. E lá vinha com os seios apertados em um decote florido. "Quanto será  que haviam lhe custado?",  mas endireitou o sorriso para oferecer três  beijinhos.

- Desculpa o atraso, mas o Beto... - Lágrimas  despencaram deixando um tênue  rastro de rímel. - Eu... eu...nós... - Escondeu os soluços sob as mãos.

Cláudia  ficou por instantes sem reação, até  lembrar-se de alcançar um guardanapo que sobrou do café. A amiga pegou rapidamente e pôs-se a enxugar a maquiagem mais do que os próprios olhos. Ela não pôde  deixar de notar a aliança mais estravagante que já vira: um grosso anel de ouro com um diamante solitário  no meio. Colocou sem jeito o braço em seu ombro nu e deu-lhe tapinhas enquanto fazia o chiado com os lábios, o mesmo que costumava acalmar o filho. "Vai ficar tudo bem, calma..." Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, a amiga suspirou e soltou as palavras como se soltasse um pum que há muito pedia para sair.  

- Vamos nos separar. - Depois veio a cara de alívio.
- Separar, Su? Como assim separar? Vocês recém casaram! 

Agora era a amiga que soltava gritinhos histéricos. Susana sorria com seu batom cor de ameixa e tamborilava as unhas de gel de bolinha saboreando cada expressão de Cláudia. Quem diria que seria ela a chutar aquela bela bunda do Beto? A bunda empinada e redonda, junto com o tanquinho depilado, com as coxas musculosas e os bíceps de quem conseguia trepar a segurando por quarenta minutos? Havia a amiga por acaso colocado botox nos neurônios? Beto...se ao menos naquele dia o filho ranhento não estivesse doente e a obrigado a ficar em casa, então talvez....talvez ela tivesse tido uma chance. Isto se desconsiderasse a diferença visual que havia entre ela e a amiga. Podia-se imaginar sentada ao seu lado enquanto ele chegava e a convidava para dançar. E no fim a amiga lhe deixaria a bolsa para cuidar enquanto partia com aquele belo par de olhos verdes. "Ele nunca me olharia mesmo..." Conferiu vagamente os seus quadris, lembrando das fotos que havia visto da lua-de-mel no facebook. Ela curtiu, mas só  para não despertar desconfiança, porque de tudo que havia passado em sua cabeça, "like" não era de longe a primeira. Beto e Susana no mar do Haiti, a amiga na banheira de hidromassagem, Beto de sunga...Beto de snorkel...Beto de jet ski com Su na garupa...Beto só  de bermuda no passeio de barco... Como alguém que passa lua-de-mel naquele paraíso  pensa em se separar um mês  depois?

- Posso ao menos perguntar porquê?
- Pode.
- Então? Por que? - Susana fez um gesto com as mãos e uma careta. - Quer ser mais específica  por favor?
- É pequeno. Pequeno, não, minúsculo.
- O que, mulher? - Claudia não conseguia imaginar o que a poderia incomodar em um homem bem de vida, bonito, alto, educado, culto...
- O pirilau ôxe. O pau, o tico, whatever...
- Mas... veja bem amiga, os homens não são todos iguais e tamanho não é documento.
- Experimenta oito centímetros  de documento e depois conversamos.
- Você disse oito? Tem certeza mesmo? Mediu? 
- Aham. Com o meu dedo e claro, depois medi o dedo.
- Oito centímetros duro?
- Caramba, já falei Cláudia! É complicado, já na primeira vez foi. Não há maneira de sentir aquilo. É como fazer sexo com o meu polegar.
- E o que você  vai dizer a ele? Que vai terminar porque tem um pau pequeno?
- Nossa, você  falando assim até me sinto a pior das quase ex-esposa... Não sei, não pensei ainda. Acho que o clássico, né: o problema sou eu, não você...
- Já tentou colocar atrás?
- Já, é a unica forma de eu não  me sentir o metrô  de Paris.
- E um vibrador na frente e ele atrás?
- Já imaginou eu dando esta desculpa por mais de dois anos? 
- E um amante?
- Cláudia, mulher, você tá é louca para salvar este casamento, parece padre, viu?
A verdade era que nem Claudia sabia como lidar com aquele quadro. Olhou para Susana fingindo que nunca havia imaginado como seria Beto nu, embora sempre tivesse procurado pelo volume na sunga branca. Mesmo com o visível desespero da amiga, não conseguia encaixar uma coisa que não fosse menor do que quinze centímetros. Era como se uma parte de seu mundo ruísse, mesmo que fosse um mundo que se restringia a vinte minutos enquanto se masturbava. Como ia pensar em Beto lhe lambendo os seios agora? E quando pusesse o dedo lá embaixo saberia exatamente como a amiga sentia-se na hora do sexo.
- Mas e o amor?
- Lembra da música da Rita Lee? Sexo é do bom, amor é do bem? Então, e lá o amor sobrevive a oito  centímetros?
- Por causa de...
- Nós já tentamos todas as posições anatomicamente possíveis, isto é, as em que o negocinho não fica saindo o tempo todo e quer saber? Os sexólogos mentem, não existe ponto g, só um grande e enorme vazio em mim...



Era  meia noite de domingo e Cláudia não tinha pregado o olho apesar de saber que no outro dia tudo começava outra vez. A tela do celular iluminou-se quando a mensagem de Susana chegou. Ela debruçou-se nos lençóis amarrotados enquanto lutava para não ceder à tentação. Lá de dentro da gaveta das meias, embrulhado em uma toalha de rosto, jazia Beto. Tudo aquilo que ela conhecia dele. E ainda por cima nem verdade era. Cláudia desceu da cama na ponta dos pés e agarrou-o por baixo das cobertas. Sentiu a vulva contrair-se com o brinquedo de quase vinte centímetros. Beto entrava e saía de dentro dela como o fazia com Susana. A diferença é que nenhuma delas estava satisfeita com o pedaço de Beto que lhe coubera...



Se eu aceitasse era capaz de doer menos

Uma das coisas que a vida tem tratado de me ensinar é o quanto sou tola em acreditar na sua imutabilidade. Chegou um ponto que disse: vida, não mexas mais! Está bom assim. Mas parece que nasci mesmo para andar em montanha russa, logo eu que detesto alturas e a sensação de que o estômago vai sumir cada vez que rodopio. 
Quando fui buscar o Fabian na escola, voltei olhando para o prédio da esquina. Olhei para a sacada do primeiro andar, é lá que eu moro. Ainda tenho casa...mas e amanhã? O que será será? Não disse nada, mas o que mais me mata foi ter ignorado as vezes que o marido contou que achava que aquilo não andava bem. Eu: o quê, deixa de ser pessimista! Eu, logo eu, a pessoa que vê o copo vazio e que pela primeira vez brincava de o ver meio cheio. O que mais me dói é ter esta inocência ainda cravada dentro de mim. Não nasci para morrer perto do mar, nasci para espirais e afundamentos em grande velocidade, nasci para aquela sensação de subida que fazemos com tanto esforço, acabar em um abismo em poucos segundos.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Os iates da marina

Quando caminhamos pela praia sempre dou um jeito de olhar para eles, bem lá no fundo, passando os barquinhos, as lanchas, devidamente enfileirados de bunda para nós. Às vezes olho de cima, quando estou em uma espécie de praça-deck que abriga um dos parquinhos da cidade. São como brinquedos de adulto só que de fibra ao invés de plástico, só que caros, extremamente caros para o bolso de 99% da população. 
Estes dias o marido viu que estavam vendendo uma vaga na marina pela pechincha de 230 mil euros, detalhe: vale apenas para dez anos. O preço de um apartamento para estacionar o barquinho por uma década. Mas obviamente, quem teve uns cinco milhões para desembolsar na compra, não está preocupado com esta mixaria. 
Eu sei que estamos em plena época do beijinho no ombro, do cidadão começar a falar e já tem dedo apontando que é inveja. Mas de verdade que não tenho inveja disto (ao menos), tanto que eu penso que mesmo me tornando uma milionária, jamais compraria um iate, na loucura, talvez alugasse um por um fim de semana. Eu acho é obsceno mesmo. Acho obsceno uma pessoa ter a quantidade de dinheiro para comprar um barco que fica parado há mais de três meses. E sim, eles ficam mesmo parados. 
Eu tinha uma professora de história que dizia: o suor do teu trabalho pode comprar uma casa, pode comprar um carro ou dois, pode até comprar duas casas (uma de praia), e te levar para viajar fora do país. Mas o suor do teu trabalho não compra um prédio, nem uma ilha, nem um iate (completo eu). Há muita gente que teve que ser explorada, que teve que ganhar baixos salários, muita sonegação teve que ser feita para que tu pudesses usufruir deste bem. E eu concordo. Acho engraçado virem com aquele papo de comunista, esquerdista, sei lá mais o quê, principalmente vindo de quem é pobre. Então a pessoa acha que se trabalhar muito pode ganhar dinheiro para comprar um iate? Conta esta pro papeleiro que carrega sua carroça doze horas por dia para vender papel a dez centavos o quilo. Ou pro professor de escola pública, ou para a empregada doméstica, ou para o frentista (é aquela pessoa que põe o combustível  para os clientes do posto)*... e a lista segue. Já falei sobre isto aqui mas volto a dizer, a meritocracia me dá asco. Continuando, vendo por outro lado, quer dizer que se aquele sujeito é rico, é por que de fato mereceu? Eike Batista que o diga. As portas se abriram só porque viram que ele era o espírito empreendedor materializado na Terra? Ou será que foi porque o cara já nasceu um tiquinho rico, molhou a mão do governo, pagou mal seus funcionários, teve protecionismo quando os negócios não andavam muito bem?  
Talvez quem possa de fato dizer que comprou um iate com o seu suor, seja algum jogador de futebol. Embora possamos divagar a origem  daquela grana (já que futebolisticamente falando, alguns salários e contratos milionários escondem muita lavagem de dinheiro), talvez o único exemplo legítimo de meritocracia seja o do jogador de futebol. Um grande craque pode vir de qualquer lugar, apesar de vir principalmente das classes mais baixas. Ele pode ter um dom, mas com certeza para que se destaque e possa garantir o seu primeiro milhão, vai ter que dar muito duro e treinar para isto. Se ele conseguir que alguém o agencie, se ele tiver condições de ter um bom treinador, se ele tiver tempo para jogar quatro horas por dia ou mais, se ele tiver tratamento adequado quando surgirem lesões, se ele não arrumar confusão quando o deixarem no banco de reservas, se ele conseguir ser decisivo quando o seu time mais necessitar, então sim, ele mereceu se dar bem. Pena mesmo é que não podemos transpor este sucesso para as restantes profissões, pois eu desconheço um biólogo por exemplo, que possa comprar um jatinho com o seu salário. Seria muito fácil, mas nada lógico ignorarmos todas as estruturas sociais e econômicas que levam a que alguns consigam estacionar um iate sem usá-lo e outros batalhem para pôr comida na mesa. Mas o pior de tudo, é ver que há gente que ache isto justo. Eu não, acho obsceno. Mesmo que o iate preto com cinza que vi hoje, tenha escrito na bunda "Leomar" e que seja de algum jogador brasileiro.

*explicação necessária, pois não existe esta profissão  na maior parte da Europa.
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